segunda-feira, 8 de agosto de 2016
O “ideal olímpico”
O “ideal olímpico” moderno foi formatado no final do século XIX, num contexto geopolítico no qual se fazia necessário criar mecanismos para garantir a manutenção de um modelo que, por motivos políticos, econômicos e, principalmente, ideológicos, estava em decadência. No início do século XX, as duas grandes guerras, o totalitarismo (de direita e de esquerda) e a Crise de 29 foram sintomas dessa decadência, e no pós-2ª Guerra, as duas potências emergentes – EUA e URSS – herdaram o mundo e incorporaram esse ideal como forma de demonstrar sua superioridade global e – mais uma vez – manter a vigência da (nova) ordem, que agora os beneficiava, assim como do status quo derivado dela.
Apesar do atentado terrorista de Munique e dos boicotes nas edições de Moscou e de Los Angeles, os Jogos Olímpicos serviram bem aos propósitos que lhe atribuíram os donos do mundo, pelo menos até bem pouco tempo atrás, antes que tudo começasse novamente a mudar.
Atualmente, num novo ciclo de colapso e renovação da ordem vigente, tenta-se adequar o ideal olímpico aos novos tempos, incorporando pautas como meio ambiente, proteção aos refugiados e redução da desigualdade entre seus valores. Tudo muito belo e positivo, apesar da crescente ameaça do terrorismo, numa nova tentativa de preservação da ordem vigente por aqueles que se beneficiam dela. Se funcionará ou não só o tempo dirá, afinal, as engrenagens da História são irrefreáveis – para o bem e para o mal.
segunda-feira, 18 de abril de 2016
Executivo X Legislativo
O histórico de embates entre o Legislativo e o Executivo no Brasil não é novo.
Dom Pedro I, que cancelou uma Assembleia Constituinte na marra, quis passar por cima do Parlamento e durou meros 9 anos no poder, pouquíssimo tempo para um “imperador”. Seu filho, Pedro II, criou um arremedo de parlamentarismo e durou 49.
Nos tempos republicanos, Deodoro quis sitiar o Congresso e acabou entregando o poder de bandeja para os cafeicultores, através de seu vice, Floriano.
Os poucos casos de vitória do mandatário nessa contenda são os de Getúlio Vargas e Costa e Silva, que fecharam o Congresso e fizeram na marra o que achavam que tinham que fazer.
Nos dias atuais, o fato é que um partido que, após 13 anos no poder, não consegue o apoio de um mero terço do Congresso numa votação importante como a de hoje não tem a menor condição de governar um país grande e centralista como o Brasil. Principalmente em se tratando de um Congresso tão fraco quanto esse. Fracasso total.
sábado, 2 de abril de 2016
2016 não é 1964
Nosso governo não é de esquerda; os bancos batem recordes de lucro ano após ano sucessivamente; parte da indústria e o agronegócio foram até recentemente alimentados por subsídios e isenções em iniciativas do governo federal; empreiteiras superfaturaram (e superfaturam) à vontade; os interesses de empresas e governos estrangeiros não estão sendo ameaçados; nossa economia está totalmente inserida no tal do “capitalismo internacional”, antes conhecido como “divisão internacional do trabalho”, o que também é do interesse dos donos do nosso “mercado”; não há nenhuma proposta séria de reforma política, social ou econômica em pauta no país; e nenhum tema polêmico vem recebendo atenção ou apoio do governo federal.
Além disso, João Goulart ainda tinha, pouco antes de cair, apoio de parte significativa de uma população realmente dividida entre governistas e opositores.
Ou seja, a analogia entre 1964 e 2016 é uma simples fantasia alimentada pelo ressentimento das viúvas da Guerra Fria, nada mais que isso. Não há um golpe em curso. O que há é um processo de impeachment articulado pelo pior congresso da nossa história contra o pior governo da nossa história. O PT está sendo engolido pelas cobras que ele próprio alimentou. Bem feito.
segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016
Cinema Nacional
Em 1962 o cinema brasileiro conquistou a Palma de Ouro de melhor filme no já prestigiado Festival de Cannes com a produção “O Pagador de Promessas”. O cinema nacional já havia conquistado, em 1953, a categoria “filme de aventura” desse mesmo festival com “O Cangaceiro” e, nos anos seguintes, além de disputar com honrarias e aplausos outras edições desse e de outros festivais consagrados, como o de Veneza e o de Berlim, e alguns de menor expressão, o país teve sua produção cinematográfica reconhecida no mundo todo, com destaque para o Cinema Novo, de Glauber Rocha, até hoje conteúdo obrigatório em algumas das principais faculdades de cinema dos EUA. Nos “anos de chumbo” essa produção se tornou praticamente clandestina, por causa da censura, mas, ainda assim, bons filmes eram produzidos entre uma pornochanchada e outra, com caráter crítico e criatividade para driblar os censores.
Atualmente, em pleno exercício das liberdades democráticas, o cinema
brasileiro parece ter encolhido frente ao que foi em outros tempos, se limitando
a duas categorias: “fazeção de média” e “tiração de onda”. Nossa produção, com
exceções mais raras do que na época dos milicos, uma ou duas há cada 10 ou 15
anos, está dividida entre o melodrama populista (como “Que horas ela volta?”) e
a comédia sexista (“Os homens são de Marte...”, etc.).
Nunca fomos o centro do cinema mundial, mas já tivemos tempos melhores.
Nesse cenário, a falta de um Oscar no “currículo” é o nosso menor problema.
sexta-feira, 29 de janeiro de 2016
Taxistas X Uber
Desde a Revolução Industrial - principalmente após a 2ª Revolução Industrial - que uma das características da evolução tecnológica é eliminar antigos postos de trabalho e, simultaneamente, criar novos (de ferreiros a borracheiros; de datilógrafos a digitadores; etc., etc., etc.). Além disso, há poucas décadas não haviam em SP (e menos ainda em outras cidades) vans e motoboys atendendo demandas que os serviços tradicionais de transporte não atendiam. Esses novo...s serviços, em alguns casos, foram "impostos" a cidade à força e/ou através do lobby de vereadores e outras autoridades interessadas em sua regularização (e em seu lucro). Esse histórico evidencia o absurdo da reação dos taxistas paulistanos ao Uber, além da incompetência das autoridades em regularizar essa situação, dando espaço ao caos e à violência que, como sempre, atrapalham e dificultam ainda mais a já caótica rotina do paulistano. Desconfio que essa situação já teria sido controlada se os políticos paulistanos descobrissem alguma forma de levar vantagem com o serviço, não para a sua locomoção, pois carros oficiais não faltam à disposição, mas as já conhecidas vantagens costumeiras que nossos governantes tanto apreciam. Enquanto isso não acontece, continuamos à mercê do atraso, mais um entre nossos tantos.
quinta-feira, 21 de janeiro de 2016
Queda de Roma / Queda da Europa
A histórica e decisiva “queda de Roma” (476) foi
provocada por alguns fatores internos e um fator externo.
Entre os fatores internos destacam-se 3: crise
econômica, crise moral e crise política. Sendo que todas elas são consequências
de outras crises que transformaram significativamente o modo de vida romano.
Com o advento do Império e a implantação da chamada
Pax Romana, os romanos interromperam
suas guerras de conquista, se limitando a lutar para manter as fronteiras já
definidas após décadas de expansão territorial. Com a redução drástica das
campanhas militares provocada por essa política, o número de escravos
(prisioneiros de guerra) disponível caiu, reduzindo a produção, o comércio, a
arrecadação e, consequentemente, prejudicando a economia, o que tornou, gradualmente,
inviável atender as demandas por estrutura e segurança no vasto território.
A crise moral, por sua vez, derivou da rápida
expansão do cristianismo entre os pobres do Império, nos séculos após a vida e
crucificação de Jesus. Com a ascensão dos valores cristãos e devido ao
contraste desses valores com a moral romana, militarista, materialista e
violenta, em comparação com a fraternidade cristã, boa parte da sociedade
romana deixou de reconhecer a autoridade do Imperador e das outras instituições
políticas da época. Devido à esse fator, a desobediência civil, as revoltas e
tentativas de revolução se tornaram constantes, tornando cada vez mais difícil
manter a população sob controle.
Do ponto de vista político, tanto a falta de
recursos para conquistar e custear apoio, quanto a perda de autoridade devido à
contradição moral com o cristianismo, provocaram o enfraquecimento das
autoridades políticas e a perda de influência das instituições romanas, assim
como de legitimidade perante aqueles que deveriam ser governados, que, por sua
vez, romperam o “contrato” que os levava a respeitar as autoridades
tradicionais. A elite romana buscava uma riqueza cada vez mais escassa,
enquanto o povo não mais reconhecia as regras tradicionais de organização
cultural e social, resultando assim no colapso do sistema político do Império.
Essas fraquezas fragilizaram o Império e permitiram
que os povos não romanos, em muitos casos realmente incivilizados e denominados
“bárbaros” pela população latina de Roma, passassem a lutar tanto para se
libertar do domínio político romano, quanto para atacar e saquear áreas antes
protegidas do território romano, em busca de recursos, riquezas e terras
férteis. Com as crises internas, Roma ficou exposta a esse fator externo,
chegando por fim à queda quando os hérulos, liderados por Odoacro, tomaram a
capital e destronaram Rômulo Augusto, último imperador romano.
Enfim, essa realidade é aceita pela historiografia:
Roma caiu por ter perdido sua força econômica, sua autoridade política e sua
legitimidade moral, sendo assim derrubada por povos que não partilhavam de seus
valores.
Comparando essa realidade especificamente romana na
antiguidade com a da Europa atual como um todo, é inevitável identificar as
semelhanças.
terça-feira, 19 de janeiro de 2016
Para onde vão as artes?* (Eric Hobsbawm)
A rigor é inconveniente perguntar a um historiador como será a cultura no novo milênio. Somos especialistas no passado. Não estamos ligados ao futuro, e certamente não ao futuro das artes, que passam pelo momento mais revolucionário de sua longa história. Mas, uma vez que não podemos recorrer a profetas profissionais, apesar das gigantescas somas que governos e empresas gastam com seus prognósticos, um historiador pode se aventurar pelo campo da futurologia. Afinal, não obstante todas as sublevações, passado, presente e futuro formam um continuum indivisível.
O que caracteriza as artes em nosso século é sua dependência com a revolução tecnológica, única do ponto de vista histórico, e sua transformação por ela, em particular no tocante às tecnologias de comunicação e reprodução. Pois a segunda força que vem revolucionando a cultura, a sociedade de consumo de massa, é impensável sem a revolução tecnológica, por exemplo, sem filme, sem rádio, sem televisão, sem aparelhos de som portáteis no bolso da camisa. Mas é justamente isso que dá pouca margem a previsões gerais sobre o futuro das artes. As velhas artes visuais, como a pintura e a escultura, até recentemente continuavam sendo puro trabalho manual; não tomaram parte na industrialização — e vem daí, a propósito, a crise em que hoje se encontram. Já a literatura se ajustou à reprodução mecânica meio milênio atrás, nos tempos de Gutenberg. O poema não é feito para ser representado em público (como já foi o caso do poema épico, que por isso caiu em desuso com a invenção da imprensa) nem — como na literatura clássica chinesa — para ser visto como obra de caligrafia. É, simplesmente, uma unidade mecanicamente montada a partir de símbolos alfabéticos. Onde, quando e como o recebemos, no papel, na tela ou em qualquer outra parte, não deixa de ter importância, mas é questão secundária.
A música, entretanto, no século XX, e pela primeira vez na história, rompeu a muralha da comunicação puramente física entre instrumento e ouvido. A esmagadora maioria de sons e ruídos que ouvimos como experiência cultural hoje nos chega por via indireta — mecanicamente reproduzida ou transmitida à distância. Assim, cada uma das Musas tem tido uma experiência diferente com a era da reprodutibilidade de Walter Benjamin, e enfrenta o futuro cada uma à sua maneira. Começo, portanto, com um breve exame das áreas individuais da cultura. Como escritor, talvez me seja permitido examinar primeiro a literatura.
Parto da constatação de que (em contraste com o início do século XX) a humanidade no século XXI não será mais constituída basicamente de analfabetos. Hoje só restam duas partes do mundo onde a maioria das pessoas é analfabeta: a Ásia Meridional (Índia, Paquistão e regiões circunvizinhas) e a África. Educação formal significa livros e leitores. Um mero aumento de 5% no nível de alfabetização significa um aumento de 50 milhões de leitores potenciais, ao menos de livros didáticos. Mais importante ainda, desde meados deste século a maioria da população dos chamados países “desenvolvidos” espera receber educação secundária, e no terço final do século uma percentagem significativa dos grupos etários em questão recebe instrução superior (na Inglaterra hoje a proporção é de cerca de um terço). Dessa maneira, o público para literatura de todos os tipos vem se multiplicando. E, com ele, a propósito, todo o “público instruído” ao qual as artes da alta cultura ocidental se destinam desde o século XVIII . Em números absolutos, o novo público leitor continua a crescer acentuadamente. Até mesmo os meios de comunicação de massa a ele se dirigem.
Parto da constatação de que (em contraste com o início do século XX) a humanidade no século XXI não será mais constituída basicamente de analfabetos. Hoje só restam duas partes do mundo onde a maioria das pessoas é analfabeta: a Ásia Meridional (Índia, Paquistão e regiões circunvizinhas) e a África. Educação formal significa livros e leitores. Um mero aumento de 5% no nível de alfabetização significa um aumento de 50 milhões de leitores potenciais, ao menos de livros didáticos. Mais importante ainda, desde meados deste século a maioria da população dos chamados países “desenvolvidos” espera receber educação secundária, e no terço final do século uma percentagem significativa dos grupos etários em questão recebe instrução superior (na Inglaterra hoje a proporção é de cerca de um terço). Dessa maneira, o público para literatura de todos os tipos vem se multiplicando. E, com ele, a propósito, todo o “público instruído” ao qual as artes da alta cultura ocidental se destinam desde o século XVIII . Em números absolutos, o novo público leitor continua a crescer acentuadamente. Até mesmo os meios de comunicação de massa a ele se dirigem.
O filme O paciente inglês, por exemplo, mostra o personagem principal lendo Heródoto, e logo em seguida massas de britânicos e americanos compram esse velho historiador grego, de quem antes sabiam apenas o nome, se tanto.
Essa democratização da matéria escrita deve, necessariamente — como no século XIX —, levar à fragmentação pela ascensão de velhas e novas literaturas nacionais e — também como no século XIX — a uma idade de ouro para tradutores. Pois como, a não ser por meio de traduções, poderiam Shakespeare e Dickens, Balzac e os grandes russos terem se tornado propriedade comum da cultura burguesa internacional? Isso ainda é parcialmente verdade em nossa época. Um John le Carré torna-se best-seller porque é rotineiramente traduzido para trinta ou cinquenta idiomas. Mas a posição hoje é fundamentalmente diferente em dois sentidos.
Em primeiro lugar, como se sabe, a palavra durante algum tempo foi obrigada a recuar diante da imagem, e o mundo escrito e impresso diante do falado na tela. Tiras de quadrinhos e livros ilustrados com um mínimo de texto hoje não se destinam mais somente a iniciantes que estão aprendendo a soletrar. De muito mais peso, no entanto, é o recuo da notícia impressa em face da notícia falada e ilustrada. A imprensa, principal veículo da “esfera pública” de Habermas no século XIX assim como em boa parte do século XX, dificilmente será capaz de manter sua posição no século XXI. Porém, em segundo lugar, a economia e a cultura globais de hoje precisam de uma língua global para suplementar a língua local, e não apenas para uma elite insignificante em termos numéricos, mas para estratos mais vastos da população. Hoje o inglês é a língua global, e provavelmente continuará a ser no século XXI. Uma literatura internacional para especialistas em inglês já está em desenvolvimento. E esse novo inglês-esperanto tem tão pouco a ver com a linguagem literária inglesa quanto o latim de igreja da Idade Média tinha a ver com Virgílio ou Cícero.
Mas nada disso pode deter a ascensão quantitativa da literatura, ou seja, de palavras tipografadas — nem mesmo a das belles lettres. A rigor, eu quase diria que — apesar dos prognósticos pessimistas — o mais importante veículo tradicional da literatura, o livro impresso, sobreviverá sem grande dificuldade, com poucas exceções, como as dos grandes livros de referência, léxicos, dicionários etc., os queridinhos da internet. Em primeiro lugar, não há nada mais fácil e prático de ler do que o livro de bolso pequeno, portátil e claramente impresso inventado por Aldus Manutius em Veneza no século XVI — muito mais fácil e prático do que a cópia impressa de um texto de computador, que, a propósito, é incomparavelmente mais fácil de ler que o tremeluzente texto na tela. Nem mesmo o e-book baseia suas reivindicações numa legibilidade superior, e sim numa maior capacidade de armazenamento e no fato de não ser preciso virar páginas.
Em segundo lugar, o papel impresso é, até a presente data, mais durável do que veículos tecnologicamente mais avançados. A primeira edição d’Os sofrimentos do jovem Werther ainda hoje é legível, mas textos de computador de trinta anos atrás já não o são necessariamente, seja porque — como velhos filmes e fotocópias — têm prazo de validade limitado, seja porque a tecnologia é tão rapidamente superada que os computadores mais recentes não os conseguem ler mais. O progresso triunfal do computador não acabará com o livro, assim como o cinema, o rádio, a televisão e outras novidades tecnológicas não o fizeram.
A segunda das belas-artes que hoje vai muito bem é a arquitetura, e assim continuará no século XXI. Pois a humanidade não pode viver sem edifícios. Pintura é luxo, mas casa é necessidade. Quem projeta e constrói prédios, onde, como, com que materiais, em que estilo, como arquiteto, engenheiro ou computador — tudo isso provavelmente mudará, mas não a necessidade de criar prédios. A rigor, pode-se mesmo dizer que ao longo do século XX o arquiteto, em particular o arquiteto de grandes edifícios públicos, tornou-se o mandachuva do mundo das belas-artes. Ele — em geral é ele, não ela — encontra a expressão mais adequada, ou seja, a mais onerosa e impressionante, para a megalomania da riqueza e do poder, e também do nacionalismo. (Afinal, a região basca acaba de contratar uma sumidade internacional para produzir um símbolo nacional, em outras palavras, um museu de arte não convencional em Bilbao, que abrigará outro símbolo nacional, Guernica, de Picasso, embora, ao pintá-lo, Picasso não tenha pretendido produzir um exemplo de arte regional basca.)
É quase certo que essa tendência continuará no próximo século. Hoje Kuala Lumpur e Xangai já dão provas de que possivelmente têm direito ao status de economias de primeira linha com arranha-céus que batem recordes de altura, e a Alemanha, reunificada, transforma sua nova capital num gigantesco canteiro de obras. Mas que espécie de prédio simbolizará o século XXI? Uma coisa é certa: serão prédios grandes. Na era das massas é pequena a probabilidade de que venham a ser sedes de governo, ou mesmo de grandes corporações internacionais, ainda que estas continuem a dar nome aos arranha-céus. Quase certamente, serão edifícios, ou conjuntos de edifícios, abertos ao público. Antes da era burguesa eram, ao menos no Ocidente, as igrejas. No século XIX eram, caracteristicamente, ao menos nas cidades, as casas de ópera, as catedrais da burguesia, e as estações ferroviárias, as catedrais do progresso tecnológico. (Valeria a pena estudar, um dia, por que, na segunda metade do século XX, a monumentalidade deixou de ser uma característica das estações ferroviárias e de seus sucessores, os aeroportos. Pode ser que ela esteja de volta amanhã.) No fim do nosso milênio há três tipos de edifício ou conjunto de edifícios que funcionam bem como símbolos da esfera pública: primeiro, as grandes arenas e os grandes estádios para shows e esportes; segundo, o hotel internacional; e terceiro, o mais recente desses avanços, os gigantescos edifícios fechados dos novos shopping centers e centros de entretenimento. Se eu tivesse de apostar num desses cavalos, apostaria nas arenas e nos estádios. Mas, se me perguntarem quanto tempo durará a moda, que se alastra desde a construção da Ópera de Sydney, em outras palavras, a moda de projetar esses edifícios com formas inesperadas e fantásticas, não saberei responder.
E que dizer da música? No fim do século XX vivemos num mundo saturado de música. Sons nos acompanham por toda parte, e em particular quando estamos aguardando a vez em espaços fechados — no telefone, num avião ou no cabeleireiro. A sociedade de consumo parece achar que silêncio é crime. Por isso a música nada tem a temer no século XXI. É verdade que soará bem diferente da música do século XX. Já foi fundamentalmente alterada pela eletrônica, o que significa que está em grande parte liberta do talento inventivo e da habilidade técnica do artista individual. A música do século XXI será essencialmente produzida, e chegará aos nossos ouvidos sem muita contribuição humana.
Mas o que ouviremos, de fato? A música clássica, basicamente, vive de um repertório morto. Das cerca de sessenta óperas encenadas na Ópera de Viena em 1996-97, só uma era de compositor nascido no século XX, e a situação não é muito melhor nas salas de concerto. Além disso, a audiência potencial de concertos, que mesmo numa cidade de mais de 1 milhão de habitantes consiste, na melhor hipótese, em perto de 20 mil senhoras e senhores de idade, quase não se renova. Não pode continuar assim indefinidamente. A rigor, enquanto o repertório continuar congelado no tempo, nem mesmo a imensa audiência de ouvintes indiretos poderá salvar o negócio da música clássica. Quantos discos da sinfonia Júpiter, da sinfonia Júpiter, da Winterreise de Schubert ou da Missa solemnis o mercado tem condições de acomodar? Depois da Segunda Guerra Mundial, esse mercado foi salvo três vezes por inovações tecnológicas, ou seja, pelas sucessivas transferências para long-plays, para fitas cassete e para CDs. A revolução tecnológica prossegue, mas o computador e a internet estão praticamente destruindo o direito autoral, assim como o monopólio de produção, e muito provavelmente terão efeito negativo nas vendas. Nada disso significa, de forma nenhuma, o fim da música clássica, mas com alguma dúvida significa uma mudança em seu papel na vida cultural, e com toda a certeza uma mudança em sua estrutura social.
Certa exaustão também pode ser observada hoje na música comercial de massa, área que foi tão viva, tão dinâmica e tão criativa durante este século.
Menciono apenas um indício. Em julho, por exemplo, uma pesquisa entre fãs e especialistas de rock revelou que quase todos os cem “melhores discos de rock da história” vieram dos anos 1960, e praticamente nenhum das duas últimas décadas. Mas até agora a música pop tem sabido se revigorar, repetidamente, e deve ser capaz de fazer o mesmo no novo século.
Portanto, haverá muito canto e muito balanço no século XXI, exatamente como no século XX, ainda que, por vezes, de formas inesperadas.
No que diz respeito às artes visuais, a coisa parece diferente. A escultura consegue levar uma existência miserável na periferia da cultura, pois foi abandonada no decorrer deste século tanto pelo setor público quanto pelo privado como meio de registrar a realidade ou como simbolismo em forma humana. Comparem-se, por exemplo, os cemitérios de hoje com os do século XIX, tão engalanados de monumentos. Nos anos 1870 da Terceira República, mais de 210 monumentos foram erigidos em Paris, ou seja, uma média de três por ano. Um terço dessas estátuas desapareceu durante a Segunda Guerra Mundial, e o massacre de estátuas, como todos sabem, prosseguiu festivamente sob André Malraux por razões estéticas. Além disso, depois da Segunda Guerra Mundial, ao menos fora da esfera soviética, poucos monumentos de guerra foram construídos, em parte porque os nomes dos novos mortos poderiam ser gravados na base dos memoriais da Primeira Guerra Mundial. Os velhos símbolos e alegorias também desapareceram. Em suma, a escultura perdeu seu principal mercado. Tentou se salvar, talvez por analogia com a arquitetura, por meio do gigantismo em espaços públicos — o que é grande impressiona sempre, qualquer que seja a forma — e com a ajuda de alguns talentos genuínos; com que grau de êxito o ano de 2050 saberá julgar melhor do que nós.
A base das artes visuais do Ocidente — em contraste com as artes islâmicas, para citar um exemplo — é a representação da realidade. Fundamentalmente, a arte figurativa sofre, desde meados do século XIX, a concorrência da fotografia, que cumpre sua maior tarefa tradicional, a representação da impressão dos sentidos no olho humano, de modo mais fácil, barato e preciso. Acho que isso explica o surgimento das vanguardas desde os impressionistas, ou seja, de uma pintura além da capacidade técnica da câmera: seja por novas técnicas de representação, pelo expressionismo, pela fantasia e pela visão, e, em último caso, pela abstração, a rejeição do representacionalismo. Essa busca de alternativas foi transformada, pelo ciclo da moda, numa infindável busca do novo, que, é claro, por analogia com a ciência e a tecnologia, era considerado melhor, mais progressista, mais moderno. Esse “choque do novo” (Robert Hughes) perdeu sua legitimidade artística já nos anos 1950, por razões que não disponho de tempo para examinar melhor agora. Além disso, a tecnologia moderna hoje produz arte abstrata, ou ao menos puramente decorativa, tão bem quanto a habilidade artesanal. A pintura está mergulhada, portanto, numa crise a meu ver desesperada; o que não quer dizer que não haverá mais bons pintores, ou mesmo pintores extraordinários. Provavelmente não é por acaso que o prêmio Turner, conferido aos melhores pintores jovens britânicos do ano, tem encontrado cada vez menos pintores entre os candidatos nos últimos dez anos. Este ano (1997) não há nem sequer um entre os quatro candidatos da fase final da competição. A pintura também é ignorada na Bienal de Veneza.
Então, o que fazem os artistas? Fazem o que chamam de “instalações” e vídeos, embora o resultado seja menos interessante do que a obra de cenógrafos e especialistas em publicidade. Jogam com objets trouvés geralmente escandalosos. Têm ideias, por vezes más ideias. As artes visuais dos anos 1990 estão fazendo o caminho de volta da arte para a ideia: só humanos têm ideias, em contraste com lentes e computadores. Arte não é mais o que posso fazer e produzir criativamente, mas o que penso. “Arte conceitual” é, em última análise, subproduto de Marcel Duchamp. E, como Duchamp, com sua revolucionária exposição de um urinol público como “arte ready-made”, essas modas não visam ampliar o campo das belas-artes, mas destruí-lo. São declarações de guerra contra as belas-artes, ou contra a “obra de arte” , criação de um único artista, ícone feito para ser admirado e reverenciado pelo observador e julgado pelos críticos de acordo com critérios estéticos de beleza. Na realidade, o que faz hoje o crítico de arte? Quem ainda usa a palavra “beleza” sem ironia no discurso crítico? Só matemáticos, jogadores de xadrez, repórteres esportivos, admiradores da beleza humana, seja na voz, seja na aparência, conseguem, sem dificuldade, chegar a um consenso sobre “beleza” ou ausência de beleza. Isso não é permitido aos críticos de arte.
O que me parece significativo agora é que, após três quartos de século, artistas plásticos estejam voltando à disposição de espírito dos tempos dadaístas, ou seja, das vanguardas apocalípticas dos anos em torno de 1917-23, que não queriam modernizar a arte como tal, mas liquidá-la. Acredito que eles de alguma forma reconhecem que nosso conceito tradicional de arte está ficando obsoleto. Ainda se aplica à velha arte criada manualmente, que se petrificou no classicismo. Mas simplesmente não se aplica mais ao mundo de impressões sensoriais e sentimentos que hoje inundam a humanidade.
E por duas razões. A primeira é que essa inundação já não pode ser analisada como uma série desconectada de criações artísticas pessoais. Mesmo a alta-costura deixou de ser vista como playground de brilhantes criadores individuais, como um Balenciaga, um Dior, um Gianni Versace, cujas grandes obras, encomendadas como peças exclusivas, não repetíveis, por fregueses ricos, inspirem, e portanto dominem, a moda das massas. Os grandes nomes tornaram-se rótulos comerciais de empresas globais da indústria de atavio geral do corpo humano. A casa de Dior vive não de criações para senhoras ricas, mas de vendas em massa de cosméticos e roupas feitas enobrecidas por seu nome. Essa indústria, como todas as que servem a uma humanidade não mais sob coação da necessidade de subsistência física, tem um elemento criativo, mas não é e não pode ser criação no sentido do velho vocabulário do indivíduo artístico autônomo com aspirações a gênio. A rigor, no novo vocabulário das ofertas de emprego, “criativo” agora dificilmente quer dizer mais do que trabalho de natureza não exclusivamente rotineira.
A segunda razão é que vivemos num mundo de civilização consumista, no qual se espera que a satisfação (de preferência imediata) de todos os desejos humanos determine a estrutura da vida. Haverá uma hierarquia entre as possibilidades de satisfação de desejos? Pode haver? Faz sentido isolar uma ou outra fonte desses deleites e examiná-la separadamente? Drogas e rock, como se sabe, andam juntos desde os anos 1960. A experiência da juventude inglesa nas chamadas raves não consiste separadamente em música, dança, bebidas, drogas e sexo, nas roupas próprias de alguém — adornos para o corpo no auge da moda atual — e nas roupas da massa dos demais nesses festivais órficos, mas em tudo isso junto, já, e não em qualquer outro momento. E são exatamente essas conexões que hoje constituem a experiência cultural típica da maioria das pessoas.
A velha sociedade burguesa foi a era do separatismo nas artes e na alta cultura. Como a religião anteriormente, a arte era “algo mais elevado” , ou um passo na direção de algo mais elevado: ou seja, da “cultura” . A fruição da arte conduzia ao aperfeiçoamento espiritual e era uma espécie de devoção, fosse particular, como a leitura, fosse pública, no teatro, na sala de concertos, no museu, ou em sítios reconhecidos da cultura mundial, como as Pirâmides ou o Panteão. Distinguia-se claramente da vida diária e da simples “diversão” , ao menos até que um dia a “diversão” fosse promovida à cultura, por exemplo, Johann Strauss conduzido por Carlos Kleiber, em vez de Johann Strauss tocado numa taberna vienense, ou o filme B de Hollywood elevado ao status de arte pelos críticos de Paris. Esse tipo de experiência artística ainda existe, é claro, como o prova, entre outras coisas, a nossa participação no Festival de Salzburgo. Mas, em primeiro lugar, não é acessível, culturalmente, a qualquer um, e em segundo, ao menos para a nova geração, deixou de ser uma típica experiência cultural. O muro que separa cultura e vida, reverência e consumo, trabalho e lazer, corpo e espírito, está sendo derrubado. Em outras palavras, “cultura” no sentido burguês criticamente avaliativo do mundo cede a vez à “cultura” no sentido antropológico puramente descritivo.
No fim do século XX, a obra de arte não só se perdeu no dilúvio de palavras, sons e imagens do ambiente universal que um dia seria chamado de “arte” , como também desapareceu na dissolução da experiência estética na esfera em que é impossível distinguir sentimentos desenvolvidos dentro de nós de sentimentos trazidos de fora. Nessas circunstâncias, como seria possível falar em arte?
Quanta paixão por uma música ou por uma pintura hoje se deve a associações — não por ser a canção bonita, mas por ser “a nossa canção”? Não se pode saber, e o papel das artes vivas, ou de sua existência ainda no século XXI, continuará obscuro até que possamos sabê-lo.
* Originariamente uma palestra em alemão nos Diálogos do Festival, Salzburgo, 1996. Traduzida para o inglês por Christine Shuttleworth.
HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.
quarta-feira, 13 de janeiro de 2016
Macacos Espaciais
Analisando o aspecto meramente físico, não é
difícil constatar que o ser humano não é nada, ou muito pouco. Sem a habilidade
de voar, sem capacidade para sobreviver debaixo d’água, sem proteção natural ao
frio, sem grandes presas ou garras, enfim, sem muitos instrumentos naturais
para enfrentar os desafios da vida material, vagam os humanos desamparados pelo
planeta desde seu surgimento, se reproduzindo e buscando sentido para sua
existência.
Há também o aspecto espiritual, o qual não irei
abordar, não por não ser um especialista, mas por ser, sem dúvida alguma, um ignorante
completo nessa questão, tão amplamente debatida por pessoas muito mais
capacitadas para o assunto, tanto nos dias de hoje quanto no passado, remoto e
recente, com muito mais propriedade e capacidade de elaboração neste tema para
o qual faltam evidências materiais e sobram argumentos filosóficos.
Mas existe ainda o aspecto cultural e é esse que
nos distingue e favorece perante às demais espécies que coabitam nosso planeta.
E é esse o aspecto que nos diferencia, pois, se
fisicamente somos pouco mais que macacos, culturalmente somos capazes de quase
tudo. Projetamos e erigimos catedrais, compomos sinfonias, produzimos filmes,
músicas e peças de teatro, criamos lendas, valores, tecnologias, enfim, nossa
imaginação não tem limites e, conforme a História avança, aprendemos a
transformar essa imaginação em coisas reais, valendo-se de outras coisas
imaginadas e posteriormente criadas, como ferramentas e técnicas.
Dessa forma, transformamos o mundo e criamos um
legado, que ultrapassa nossas limitações físicas e cronológicas, impedindo que
sejamos apenas primatas efêmeros e frágeis, para nos tornarmos seres, humanos
na carne, divinos na essência, falhos e frágeis em quase tudo, mas criadores
além de criaturas.
PS: Descanse em paz, Bowie.
sexta-feira, 8 de janeiro de 2016
O novo eixo da luta de classes (texto de Slavoj Zizek)
O destino de um velho revolucionário comunista esloveno pode ser exposto como metáfora perfeita das voltas e reviravoltas descritas pelo stalinismo. Em 1943, quando a Itália capitulou, ele comandou uma rebelião de prisioneiros iugoslavos em um campo de concentração em Rab, uma ilha do mar Adriático: sob sua liderança, 200 prisioneiros semimortos de fome desarmaram 2.200 soldados italianos, sem nenhuma ajuda externa. Após a guerra ele foi preso e encarcerado numa "goli otok" ("ilha nua") da região -um conhecido campo de concentração comunista. Em 1953, ainda nesse campo, ele foi mobilizado, com outros detentos, para erguer um monumento para comemorar o décimo aniversário da rebelião de 1943 em Rab. Ou seja, enquanto era prisioneiro dos comunistas, foi obrigado a erguer um monumento a ele próprio, à rebelião liderada por ele... Se a injustiça (é mais adequado falar dela que da justiça) poética significou alguma coisa, foi o seguinte: não teria o destino desse revolucionário sido aquele da população inteira sob a ditadura stalinista, dos milhões de pessoas que, primeiro, promovem a derrubada histórica do "ancien régime", na revolução, e, depois, escravizados pelas novas regras, são obrigados a erguer monumentos em homenagem a seu próprio passado revolucionário? Acho que [o historiador britânico] Timothy Garton Ash teria apreciado esse acidente tragicômico -ele se aproxima do espírito de ironia eticamente engajada que permeia os melhores momentos de sua obra. Embora Ash seja, formalmente, meu adversário político, sempre o considerei digno de ser lido, sempre o apreciei por sua abundância de observações precisas e como fonte confiável de informações sobre as vicissitudes da desintegração do comunismo no Leste Europeu. Em "The Free World - America, Europe and the Surprising Future of the West" [O Mundo Livre - América, Europa e o Surpreendente Futuro do Ocidente, Allen Lane, 256 págs., 17,99 libras], seu novo livro, Ash aplicou a mesma abordagem lúcida e amargamente espirituosa ao quebra-cabeças das tensões recentes entre os países-chave da Europa Ocidental, por um lado, e os EUA, do outro. Suas observações sobre as relações entre Reino Unido, França e Alemanha em vários momentos recordam a ironia gentil do romance de costumes, conferindo um novo significado ao tema antigo da chamada "trindade européia". Em uma cena famosa de "O Fantasma da Liberdade", de Buñuel, as relações entre o comer e o defecar são invertidas: as pessoas ficam sentadas sobre privadas em volta da mesa, conversando agradavelmente e, quando sentem vontade de comer, perguntam discretamente à criada "onde é aquele lugar, sabe?" e saem para um pequeno cômodo nos fundos da casa, sem se deixarem notar. Então, como complemento a Lévi-Strauss, nos sentimos tentados a sugerir que as fezes também podem funcionar como "matière à penser" [matéria a pensar]: afinal, os três tipos básicos de privada não formam uma espécie de correlação/contraponto ao triângulo culinário levi-straussiano?
Chafurdando em ideologia
Numa privada alemã tradicional, o buraco no qual as fezes desaparecem depois de darmos a descarga fica à frente, de modo que primeiro o cocô fica exposto à nossa frente, para cheirarmos e inspecionarmos para verificar possíveis sinais de doença. Na privada francesa típica, pelo contrário, o buraco fica atrás, ou seja, a idéia é que o cocô desapareça o quanto antes. E a privada americana (anglo-saxã), finalmente, apresenta uma espécie de síntese, uma mediação entre esses dois pólos opostos -a bacia da privada fica cheia de água, de modo que as fezes flutuam sobre ela, visíveis, mas não para serem inspecionadas.
Não surpreende que, na famosa discussão sobre diferentes tipos de privadas européias presente no começo de seu livro semi-esquecido, "Medo de Voar", Erica Jong afirme, em tom zombeteiro, que "as privadas alemãs são realmente a chave dos horrores do Terceiro Reich. Pessoas capazes de construir privadas como essas são capazes de qualquer coisa".
Fica claro que nenhuma dessas versões pode ser explicada em termos puramente utilitários: é claramente discernível uma certa percepção ideológica sobre como o sujeito deve relacionar-se com o excremento desagradável que sai de dentro de seu corpo. Hegel foi um dos primeiros a interpretar a tríade geográfica da Alemanha/França/Inglaterra como expressão de três atitudes existenciais distintas: a profundidade e meticulosidade reflexiva alemã, a pressa revolucionária francesa, o pragmatismo utilitário moderado inglês.
Em termos de postura política, essa tríade pode ser lida como conservadorismo alemão, radicalismo revolucionário francês e liberalismo moderado inglês e, em termos do predomínio de uma das esferas da vida social, é a metafísica e poesia alemãs contra a política francesa e a economia inglesa.
A referência a privadas permite não só discernir a mesma tríade em ação no campo mais íntimo da realização da função excrementícia mas também visualizar o mecanismo subjacente dessa tríade nas três atitudes diferentes em relação ao excesso excrementício: fascínio contemplativo ambíguo, a tentativa apressada de livrar-se do excesso desagradável o mais rapidamente possível e a abordagem pragmática de tratar o excesso como objeto comum ao qual deve ser dado um fim de maneira apropriada. Assim, é fácil para um acadêmico em uma mesa-redonda afirmar que vivemos num universo pós-ideológico -assim que ele vai ao banheiro após a discussão acalorada, volta a ver-se chafurdando em ideologia.
Neste momento não devemos ter medo de formular a pergunta ingênua: por que não os EUA como polícia global? |
As observações de Ash parecem indicar como, hoje, essa trindade está passando por um deslocamento estranho de termos com relação a suas posições: os franceses parecem estar preocupados com a cultura (como salvar seu legado cultural da vulgar americanização global), os ingleses estão concentrados em dilemas políticos (devem ou não ingressar na Europa politicamente unificada etc.) e os alemães -os alemães andam preocupados com a triste inércia de sua economia. Até aqui, tudo bem, então. Entretanto, quando, na segunda metade do livro, Ash passa a fazer um diagnóstico geral das ameaças à liberdade após o fim da Guerra Fria, o tom geral se torna dogmático e simplista, e as soluções propostas soam impossivelmente ingênuas e declaratórias. É verdade que, aqui ou ali, lemos insights e declarações surpreendentes, em se tratando de um autor da posição política de Ash (como, por exemplo, o ataque inequívoco às práticas comerciais injustas dos países desenvolvidos, que estão impelindo os países pobres à ruína). Apesar disso, fica claro que falta a suas propostas positivas uma fundamentação sólida numa análise detalhada da situação mundial. Para começar, ele identifica quatro "novos Exércitos Vermelhos" (sic!), as forças do mal (ou os processos históricos) que representam (ou vão representar) uma ameaça à democracia e à liberdade nas próximas décadas: a situação no Oriente Médio (o conflito israelo-palestino sem solução e a ascensão do fundamentalismo islâmico), a situação no Extremo Oriente (em que a China vai se transformar, no que diz respeito à democracia?), a disparidade entre o Norte rico e o Sul pobre e o impasse ecológico global. Já aqui não podemos deixar de notar como os quatro pontos de preocupação são enumerados com simplicidade: Ash simplesmente faz uma lista de quatro áreas que causam preocupação. Conseqüentemente, as soluções que ele propõe se lêem mais como uma lista de desejos (os países desenvolvidos devem respeitar as regras da concorrência de mercado que querem impor aos países subdesenvolvidos; eles devem fazer mais um esforço concentrado e sério para evitar possíveis catástrofes ecológicas; a crise do Oriente Médio só pode ser resolvida por meio do esforço conjunto dos jogadores-chave, nos EUA e na Europa...) do que como um plano de ação baseado numa análise séria da constelação global.
Anticlímax
Assim, a conclusão do livro forma um anticlímax e não satisfaz as expectativas do projeto declaradas no subtítulo do livro, ou seja, mostrar como o mundo pós-Guerra Fria, apesar de gerar problemas novos e próprios, também abre uma oportunidade única de fazer frente a esses problemas. A percepção que eu tenho das causas dessa deficiência é totalmente "superada", tingida de marxismo: para mim, está claro que os quatro pontos problemáticos citados por Ash têm suas raízes na dinâmica geral do capitalismo de hoje. Essa ligação fica auto-evidente no caso dos problemas ecológicos e da disparidade econômica entre o Norte e o Sul. A ascensão do fundamentalismo islâmico não é condicionada pela recusa da civilização muçulmana em integrar a dinâmica social do capitalismo? A dinâmica econômica estranha da China não tem suas raízes no fato de ela ser um Estado comunista que aderiu plenamente à economia capitalista? Assim, a questão deveria ser formulada em um nível mais generalizado: em que pé estamos com relação ao capitalismo global? Esses pontos problemáticos são sintomas de uma falha estrutural inscrita no próprio cerne da máquina capitalista ou são meros acidentes que poderiam ser mantidos sob controle, quando não resolvidos? Isso não significa que devamos pura e simplesmente rejeitar o diagnóstico e as propostas de Ash por meio de uma réplica marxista impolida, dizendo que "ele não leva em conta a totalidade dialética da situação". Existem pontos nos quais o sofrimento humano, em sua singularidade, alcança um nível no qual a referência fácil a uma totalidade maior vira cinismo. Dentro desse espírito, o único argumento válido a favor da Guerra do Iraque foi evocado repetidas vezes por Christopher Hitchens: não devemos nos esquecer de que a maioria dos iraquianos é, concretamente, vítima de Saddam e ficaria realmente feliz e aliviada em ver-se livre dele. Saddam foi uma catástrofe tão grande para seu país que uma ocupação americana, fosse qual fosse a forma que assumisse, poderia parecer à população iraquiana uma perspectiva muito mais animadora, no que dizia respeito à sua sobrevivência diária e seus níveis de medo. Não estamos falando aqui em "levar a democracia ocidental ao Iraque", mas apenas em nos livrar do pesadelo chamado Saddam. Para essa maioria da população, a cautela expressa por liberais ocidentais só pode se configurar como uma hipocrisia profunda -será que esses liberais realmente se preocupam com o sentimento da população do Iraque? Podemos apresentar aqui um argumento ainda mais geral: o que dizer dos esquerdistas ocidentais pró-Fidel Castro, que desprezam aqueles que os próprios cubanos designam como "gusanos" (vermes), ou seja, os cubanos que deixaram o país? Entretanto, mesmo com toda a simpatia do mundo pela Revolução Cubana, que direito tem um típico esquerdista ocidental de classe média de desprezar um cubano que decidiu deixar Cuba não por desencanto político, mas também em razão da pobreza (tão grande que envolve a fome concreta)? Nesse mesmo veio, eu mesmo me recordo -no início dos anos 1990- de dezenas de esquerdistas ocidentais que, orgulhosamente, me atiraram na cara o fato de que, para eles, a Iugoslávia ainda existia e me criticaram por ter traído a oportunidade única de manter a Iugoslávia -acusação à qual eu sempre respondia que ainda não estava disposto a viver minha vida de maneira a não desiludir esquerdistas ocidentais. Existem poucas coisas mais dignas de desprezo, poucas atitudes mais "ideológicas" (se esse termo possui algum significado hoje, deve ser aplicado aqui), do que um catedrático esquerdista ocidental desprezando com arrogância (ou, ainda pior, "compreendendo" de maneira paternalista) um europeu oriental de um país comunista que anseia pela democracia liberal ocidental e por alguns bens de consumo.
Pressão bilateral
Neste momento não devemos ter medo nem mesmo de formular a pergunta ingênua: por que não os EUA como polícia global? A situação do pós-Guerra Fria de fato exigia alguma potência global para preencher o vazio. O problema é outro: basta recordar a percepção comum que se tem dos EUA como o "novo Império Romano". O problema dos EUA de hoje não é que ele seja um novo império global, mas que não o seja, isto é, embora faça de conta que o é, o país continua a agir como nação-Estado, defendendo implacavelmente seus interesses próprios. É como se a diretriz da política norte-americana recente fosse uma inversão esdrúxula do slogan muito conhecido dos ecologistas: "Pense globalmente, aja localmente".
Essa contradição é mais bem exemplificada pela pressão bilateral que os EUA exerceram sobre a Sérvia em 2003: ao mesmo tempo, os representantes americanos exigiam do governo sérvio que entregasse suspeitos criminosos de guerra ao tribunal de Haia (seguindo a lógica do império global, que exige uma instituição judiciária global, transnacional) e, simultaneamente, que ele assinasse com os EUA o tratado bilateral que obrigaria a Sérvia a não entregar pessoas a nenhuma instituição internacional (ou seja, ao mesmo tribunal de Haia). Não surpreende que a reação sérvia fosse de fúria perplexa. O paradoxo notável contido nessa questão é que, com isso, os EUA rejeitaram a jurisdição de um tribunal que foi constituído com o apoio pleno (e o voto) dos próprios EUA!
Assim, quando, falando do tribunal de Haia, Ash (em um ensaio publicado em alemão no "Sueddeutsche Zeitung") fez a afirmação patética de que "de hoje em diante nenhum Fuhrer ou Duce, nenhum Pinochet, Idi Amin ou Pol Pot deve poder sentir-se a salvo da intervenção da justiça popular, protegido pelos portões do palácio da soberania nacional", devemos simplesmente tomar nota daquilo que está faltando nesta lista de nomes, que, fora a dupla padrão formada por Hitler e Mussolini, contém três ditadores do Terceiro Mundo.
Onde está pelo menos um nome dos sete grandes -alguém como Kissinger, por exemplo?
A tortura também não está sendo "terceirizada", deixada a cargo de aliados terceiro-mundistas dos EUA? |
Como Ash bem sabe, a mesma lógica da exceção também se aplica às relações econômicas: em Cancun, em setembro de 2003, os EUA insistiram na manutenção dos subsídios aos plantadores de algodão, com isso violando seu próprio conselho sacrossanto aos países do Terceiro Mundo, aos quais diz que devem suspender os subsídios estatais e abrir-se ao mercado. E será que o mesmo não se aplica até mesmo à tortura? A estratégia econômica exemplar do capitalismo atual é a terceirização -ou seja, repassar o processo "sujo" de produção material (mas também a publicidade, o design, a contabilidade etc.) a outras empresas, por meio de subcontratos.
Dessa maneira é fácil fugir das regras ecológicas e de saúde: a produção é feita, por exemplo, na Indonésia, onde os regulamentos ambientais e de saúde são muito menos rígidos do que no Ocidente, e a empresa global ocidental que é dona do logotipo pode isentar-se de responsabilidade pelas violações de outra empresa.
Não está ocorrendo algo homólogo a isso com relação à tortura? A tortura também não está sendo "terceirizada", deixada a cargo de aliados terceiro-mundistas dos EUA, que podem realizá-la sem preocupar-se com problemas legais ou protestos públicos? E tal terceirização não foi proposta explicitamente pelo jornalista Jonathan Alter na "Newsweek" [em 5/11/2001], imediatamente após o 11 de Setembro? Depois de afirmar que "não podemos legalizar a tortura -ela é contrária aos valores americanos", ele concluiu que "teremos que pensar em transferir alguns suspeitos a nossos aliados menos escrupulosos, mesmo que isso seja uma hipocrisia. Ninguém falou que isso seria um processo limpinho". É desse modo que, hoje, a democracia do Primeiro Mundo funciona cada vez mais por meio da "terceirização" para outros países de seu lado oculto e sujo.
Essa inconsistência tem raízes geopolíticas profundas. Países como a Arábia Saudita e o Kuait são monarquias conservadoras, mas, em termos econômicos, aliados dos EUA plenamente integrados ao capitalismo ocidental. Aqui os EUA têm um interesse muito preciso e simples: para que possa contar com as reservas petrolíferas desses países, é preciso que eles permaneçam não democráticos. Ou seja, é seguro apostar que, se houvesse eleições democráticas na Arábia Saudita ou no Iraque, elas conduziriam ao poder um regime nacionalista pró-islâmico que se elegeria com base em atitudes anti-americanas.
As favelas são o verdadeiro sintoma de slogans como "desenvolvimento", "modernização" e "mercado mundial" |
Existe aqui uma ironia histórica de cujo peso Ash, a meu ver, não se deu conta. Na década de 1980, Jeanne Kirkpatrick [que foi embaixadora dos EUA na ONU] elaborou a (então) notória distinção entre regimes "autoritários" e "totalitários", que foi usada para justificar a política americana de colaborar com ditadores de direita e, ao mesmo tempo, tratar regimes comunistas com muito mais dureza. Segundo a distinção feita, os ditadores autoritários são governantes pragmáticos que se preocupam com seu poder e riqueza e vêem questões ideológicas com indiferença, mesmo que, superficialmente, afirmem alinhar-se a alguma causa importante. Contrastando com eles, os líderes totalitários seriam fanáticos que crêem em sua ideologia e se dispõem a arriscar tudo por seus ideais.
Assim, enquanto é possível lidar com governantes autoritários que reagem de maneira racional e previsível a ameaças materiais e militares, os líderes totalitários são muito mais perigosos e precisam ser confrontados de maneira direta. A ironia é que essa distinção cobre à perfeição o que deu errado na ocupação americana do Iraque: Saddam Hussein era um ditador autoritário corrupto que buscava poder e era guiado por considerações pragmáticas brutais (que o levaram a colaborar com os Estados Unidos na década de 1980), e a principal conseqüência da intervenção americana vem sendo a de gerar uma oposição "fundamentalista", muito mais radical, que exclui de antemão a possibilidade de qualquer acordo pragmático.
De maneira geral, a limitação da análise feita por Ash consiste em sua incapacidade de ver como os elementos que ele condena (o desprezo irredutível pelo ambiente, a hipocrisia dos dois pesos e duas medidas impostos pelas superpotências ao mercado mundial etc.) são produtos da própria dinâmica social que sustenta seu papel de exportadores da democracia e guardiães dos direitos humanos universais.
É verdade que, com frequência, não podemos deixar de nos chocar com a excessiva indiferença em relação ao sofrimento, mesmo -e especialmente- quando esse sofrimento é amplamente noticiado pela mídia e condenado -como se fosse o próprio ultraje diante do sofrimento que nos transformasse em espectadores imobilizados e fascinados.
De maneira mais geral, devemos enxergar como problemática a política humanitária muito despolitizada dos "direitos humanos", como ideologia do intervencionismo militar que promove objetivos econômico-políticos específicos. É claro que esse humanitarismo se apresenta como pura defesa dos inocentes e fracos contra o poder, como defesa pré-política do indivíduo contra os imensos e despóticos aparatos da cultura, do Estado, da guerra, dos conflitos étnicos, do tribalismo e do patriarcado. Mas, como observou há pouco [a escritora] Wendy Brown, a questão é a seguinte: "Que tipo de politização acionam aqueles que intervêm em defesa dos direitos humanos e contra os poderes aos quais se opõem? Será que representam uma fórmula de justiça diferente ou será que se opõem aos projetos de justiça coletivos?".
Digamos, por exemplo, que é claro que a derrubada de Saddam Hussein pelos EUA, legitimada na medida em que pôs fim ao sofrimento da população iraquiana, não apenas foi motivada por outros interesses político-econômicos (o petróleo) mas também se baseou numa idéia determinada sobre as condições políticas e econômicas (democracia liberal ocidental, garantias da propriedade privada, inclusão do país na economia global de mercado etc.) que deveriam abrir à população iraquiana a perspectiva de liberdade.
Assim, a política puramente humanitária e antipolítica de apenas prevenir o sofrimento equivale, na prática, à proibição implícita de elaborar um projeto coletivo de transformação sociopolítica.
O que acontece, então, com os direitos humanos quando eles são reduzidos aos direitos daqueles que são excluídos da comunidade política, reduzidos à "vida nua" -ou seja, quando se tornam sem utilidade, já que são os direitos daqueles que, justamente, não têm direitos, daqueles que são tratados como não humanos? Com relação a essa questão, [o filósofo francês] Jacques Rancière propôs uma inversão dialética importante: "Quando deixam de ter utilidade para você, você faz como fazem as pessoas caridosas com suas roupas velhas: doam-nas aos pobres. Os direitos que parecem ser inúteis em seus lugares são enviados ao exterior, juntamente com roupas e medicamentos, para pessoas carentes de medicamentos, roupas e direitos... Os direitos humanos se tornam os direitos daqueles que não têm direitos, os direitos de seres humanos reduzidos ao mínimo, sujeitos à repressão desumana e a condições de vida inumanas. Tornam-se direitos humanitários, os direitos daqueles que não podem implementá-los, as vítimas da negação absoluta do direito. Apesar disso, eles não são destituídos de significado. Nomes e lugares políticos nunca se tornam simplesmente vazios. O vazio é preenchido por alguém ou outra coisa... Se os que sofrem repressão inumana não conseguem implementar os direitos humanos que constituem seu último recurso, então outros precisam herdar seus direitos, para que os implementem em seu lugar. É a isso que chamamos "o direito à intervenção humanitária" -o direito que alguns países se arrogam de agir em suposto benefício de populações vitimizadas, freqüentemente contrariando os conselhos das próprias organizações humanitárias. O "direito à intervenção humanitária" pode ser descrito como uma espécie de "devolução ao remetente': o direito em desuso que tinha sido enviado aos destituídos de direitos é devolvido a seus remetentes". A referência à fórmula de comunicação proposta por Lacan (na qual o remetente recebe de volta do destinatário sua própria mensagem em forma invertida, ou seja, verdadeira) é pontual: no discurso reinante do intervencionismo humanitário, o Ocidente desenvolvido está, de fato, recebendo de volta do Terceiro Mundo vitimizado sua própria mensagem em sua forma verdadeira. E é também aqui que devemos buscar os candidatos a "indivíduo universal", um grupo determinado cujo destino hoje pode ser visto como representativo da injustiça do mundo atual: os palestinos, os prisioneiros em Guantánamo etc. A Palestina é hoje sede de um acontecimento potencial precisamente porque todas as soluções "pragmáticas" padronizadas para a crise do Oriente fracassaram repetidas vezes, de modo que a invenção utópica de um espaço novo é a única opção "realista".
Fato crucial
Mas existe uma instância privilegiada nessa série: os moradores das favelas nas novas megalópoles. O crescimento explosivo das favelas nas últimas décadas, especialmente nas megalópoles do Terceiro Mundo, desde a Cidade do México e outras capitais latino-americanas até a África (Lagos) e Índia, China, Filipinas e Indonésia, talvez constitua o fato geopolítico crucial de nossos tempos. O caso de Lagos, maior nodo no corredor de favelas, com 70 milhões de habitantes, que se estende de Abidjan [capital da Costa do Marfim] a Ibadan [na Nigéria], é exemplar: ninguém nem sequer sabe o tamanho de sua população. Oficialmente ela é dada como sendo de 6 milhões de habitantes, mas a maioria dos especialistas a estima em 10 milhões. Como em algum momento muito próximo a população urbana do mundo vai superar a população rural (é possível que, dada a imprecisão dos censos realizados no Terceiro Mundo, isso já tenha acontecido) e como os favelados vão compor a maioria da população urbana, não estamos tratando de um fenômeno marginal, de maneira nenhuma. Estamos assistindo ao crescimento acelerado da população fora do controle estatal, vivendo em condições metade fora da lei, terrivelmente carente de formas mínimas de auto-organização. Embora sua população seja composta de trabalhadores marginalizados, funcionários públicos desempregados e ex-camponeses, as favelas não formam um simples excedente: elas são incorporadas à economia global de diversas maneiras, com alguns de seus moradores trabalhando como assalariados informais ou autônomos, sem acesso à saúde ou à previdência (a principal fonte de aumento das favelas é a inclusão dos países do Terceiro Mundo na economia global, com importações alimentares baratas dos países do Primeiro Mundo, devastando as agriculturas locais). Eles constituem o verdadeiro "sintoma" de slogans como "desenvolvimento", "modernização" e "mercado mundial". Não surpreende que a ideologia dominante nas favelas seja a do cristianismo pentecostalista, com seu misto de fundamentalismo carismático movido a milagres e curas espetaculares e de programas sociais como cozinhas comunitárias e programas comunitários de atendimento às crianças e aos idosos. Embora, é claro, devamos resistir à tentação fácil de elevar e idealizar os favelados, enxergando-os como nova classe revolucionária, também devemos, como propõe [o filósofo Alain] Badiou, enxergar as favelas como um dos poucos "lugares eventais" da sociedade contemporânea -pois os favelados são literalmente uma coleção daqueles que formam a "parte de parte alguma", o elemento "excedente" da sociedade, a parte excluída dos benefícios da cidadania, os desenraizados e despossuídos, aqueles que, de fato, "não têm nada a perder, exceto as correntes que os prendem".
Dupla liberdade
De fato, é surpreendente quantas características dos favelados correspondem à boa e velha definição marxista do sujeito proletário revolucionário: eles são "livres" no duplo sentido do termo, mais ainda do que o proletariado clássico ("libertos" de todos os laços substanciais; obrigados a conviver estreitamente; jogados em uma situação na qual precisam criar alguma maneira de conviver e, ao mesmo tempo, privados de qualquer apoio às formas de vida tradicionais, às formas herdadas de vida religiosa ou étnica).
Os favelados constituem a contrapartida da outra classe emergente recente, a chamada "classe simbólica" (formada por gerentes, jornalistas, relações-públicas, acadêmicos, artistas etc.), que também é desenraizada e se enxerga como sendo diretamente universal (um acadêmico novaiorquino tem mais em comum com um acadêmico esloveno do que com negros que vivem no Harlem, a meio quilômetro de distância de seu campus universitário).
Será esse o novo eixo da luta de classes ou será que a "classe simbólica" é inerentemente dividida, de tal modo que se possa fazer uma aposta emancipatória na coalizão entre favelados e parte "progressista" da classe simbólica? O que deveríamos estar buscando são os sinais de novas formas de consciência social que vão emergir dos coletivos de favelas -serão eles as sementes do futuro.
E isso nos traz de volta ao título -e ao projeto subjacente- do livro de Ash: nossa maior esperança de um mundo realmente "livre" está no universo sombrio e triste das favelas.
Slavoj Zizek é filósofo esloveno
quinta-feira, 7 de janeiro de 2016
Impeachment?
Certo
grau de normalidade política e econômica é fundamental para viabilizar o
desenvolvimento de uma sociedade.
No
caso do Brasil, após décadas de anormalidade tanto política (ditadura/repressão),
quanto econômica (hiperinflação), construiu-se, nos anos 80 e 90, relativa
estabilidade nesses dois aspectos.
A
Constituição de 88 e as primeiras eleições presidenciais diretas em 20 anos
(89) normalizaram a prática política no país, não obstante o impeachment de
Fernando Collor de Melo. Posteriormente, nos anos 90, o Plano Real estabilizou
a economia, eliminando a inflação e elevando o status da economia brasileira no
mundo capitalista. Esperava-se, em seguida, o tão sonhado avanço social e, em
grande parte, foi esse sonho que alavancou a chegada do PT ao poder, já no
início do século XXI.
Esse
conjunto de fatores criou um clima favorável ao Brasil, interna e externamente,
fazendo inclusive com que algumas instituições estrangeiras – jornalísticas,
econômicas, políticas, etc. – acreditassem e até mesmo divulgassem a teoria do “despertar
do gigante”, promovendo um clima de otimismo no chamado “país do futuro”, para
o qual, ao que parecia, o futuro finalmente havia chegado.
Porém,
se os anos 80 representaram a normalização política, os 90 a estabilização
econômica e os 00 a possibilidade de crescimento com justiça social, a presente
década, ao contrário, trouxe aos brasileiros um sabor amargo de ressaca, junto
à um choque de realidade proporcionado pelo crescimento da corrupção, pela
incompetência gestora e pela mau uso do dinheiro público em projetos obscuros, mega eventos
desnecessários (e sem legado) e uma política social assistencialista,
ultrapassada e insustentável.
Como
consequência, a mencionada normalidade econômica não existe mais, com taxas de
juros altíssimas, déficit nas contas públicas, inflação e desemprego crescentes.
E, na política, controlada por grandes partidos sem projeto ou ideologia e
pequenos partidos de aluguel, formados por uma mistura de celebridades,
coronéis, bandidos e “paus-mandados”, assiste-se hoje à uma crise de
representatividade e legitimidade sem precedentes, com altíssima rejeição à
figura que ocupa a presidência da República e nenhuma confiança do eleitorado
no Congresso Nacional – e em seus similares estaduais e municipais.
No
cenário atual, a julgar pelo que se lê e ouve nos grandes meios de comunicação
e em outros fóruns de debate, como as redes sociais, restam uma dúvida e uma
certeza. A dúvida é sobre a utilidade do impeachment para normalizar a
situação; a certeza é sobre a necessidade de uma reforma política radical e abrangente,
coisa que os atuais detentores do poder, principais beneficiários do presente
estado de coisas, jamais deixarão passar.
quarta-feira, 6 de janeiro de 2016
Relativamente banais
Digite
na busca do Google a palavra “relativismo”
e você encontrará o seguinte verbete:
substantivo
masculino
1. qualidade do que é relativo.
2. fil ponto de vista
epistemológico (adotado pela sofística,
pelo ceticismo, pragmatismo etc.) que afirma a
relatividade do conhecimento humano e a incognoscibilidade do absoluto e da
verdade, em razão de fatores aleatórios e/ou subjetivos (tais como interesses,
contextos históricos, etc.) inerentes ao processo cognitivo.
3. ét doutrina segundo a
qual os valores morais não apresentam validade universal e absoluta,
diversificando-se ao sabor de circunstâncias históricas, políticas e culturais.
Origem
⊙ ETIM relativo + -ismo
Dado o significado do conceito,
provavelmente vivamos não mais o seu auge, coroado pelas teorias científicas do
século XX em várias áreas do conhecimento exato ou humano, mas sim a sua
banalização. Nada mais é, tudo “pode ser”, ou “parece que talvez seja”, enfim,
tudo é relativo nos nossos dias.
E o relativismo do nosso tempo se
alimenta de dois outros ismos. O
hedonismo e o materialismo. Essa tríade compõe a ética contemporânea, ou a
falta dela. Não nos importamos mais com o bem comum, só nos importamos com o
prazer individual e a posse material, custe o que custar e à quem custar, aos
distantes, aos próximos ou a nós mesmos. Somos mimados ao ponto de entendermos
como felicidade o não abrir mão, o não assumir culpa e o não arcar com consequências.
Diferente de adultos de outras eras,
coletivistas – membros da pólis, fiéis ou súditos de alguma coisa – ou até
mesmo dos individualistas clássicos dos séculos XVI ao XIX, que entendiam que
sua liberdade terminava no limite onde começava a do outro, somos os seres
humanos mais egoístas de todos os tempos. Daí a corrupção e a violência crescente
em várias partes do mundo (menos nas que conseguem reprimi-las, o que não chega
a ser uma virtude a priori).
Buscamos incansavelmente uma
saciedade impossível, dada à nossa natureza, mas perseguida com uma voracidade
faminta.
Nessa fome intensa, acabaremos nos
devorando uns aos outros, individual e socialmente, mas ainda estaremos com
fome, mesmo depois que não houver mais nada material, intelectual ou espiritual
para se comer.
terça-feira, 5 de janeiro de 2016
Tentação totalitária
As estratégias bolivarianas de
manutenção do poder na Venezuela estão se radicalizando e assemelham-se a
algumas das práticas mais nefastas dos totalitarismos do
século passado.
O uso da força para tentar impedir a posse de
políticos oposicionistas (http://www1.folha.uol.com.br/mundo/2016/01/1726032-policia-impede-acesso-de-grupo-de-deputados-opositores-a-assembleia-venezuelana.shtml) e a ação judicial da semana passada, que impugnou três dos eleitos, impedindo a obtenção da supermaioria pela oposição, anunciam
dias difíceis para os parlamentares da Mesa de Unidade Democrática, coalizão
que se opõe ao governo de Nicolás Maduro, herdeiro político de Hugo Chávez e
atual presidente da Venezuela.
Nos
últimos anos, os bolivarianos sustentaram seu projeto político na Venezuela
através do assistencialismo, da repressão à qualquer tipo de oposição e de mudanças unilaterais na
Constituição. Porém, com as recentes e seguidas quedas no preço do barril de
petróleo, sustentáculo da economia venezuelana, o governo perdeu poder de
atuação em todas essas práticas, situação agravada pelo descontentamento
popular com a crise econômica que assola o país.
Também
se esgotou a estratégia governamental de colocar a culpa de todos os problemas
internos do país na “colonização espanhola” e no “imperialismo americano”. De
prato vazio e sem acesso a itens básicos de consumo, o povo se cansou de ouvir
teorias sobre os “culpados” e passou a exigir soluções que o atual sistema de
poder não pode mais oferecer, se é que um dia pôde, daí a esmagadora vitória da
oposição nas eleições legislativas de 2015.
Resta
saber quais serão os próximos movimentos de ambos os lados desse tabuleiro e
qual será a reação da comunidade internacional à uma eventual radicalização do
regime de Caracas, em destaque a do Brasil, único gigante da região e
recentemente fiador da entrada da Venezuela no MERCOSUL.
Feliz 2000 e quanto?
A partir da Modernidade – e suas variantes tão bem descritas por pensadores como Hobsbawm, Bauman e Lipovetsky – estabeleceram-se algumas pré-condições para o desenvolvimento pleno do indivíduo e, consequentemente, das sociedades. Condições que medem o nível de modernidade e desenvolvimento de uma nação. Direitos civis, liberdade de expressão, valorização do trabalho, estímulo ao empreendedorismo, estabilidade política, sustentação econômica, inclusão social e respeito à diversidade são alguns desses fatores e o grau de desenvolvimento (pleno, não apenas material) das nações no mundo atual está diretamente relacionado à observância desses elementos em maior ou menor escala.
Apesar de outros fatores estarem constantemente sendo adicionados aos mencionados pré-requisitos – como sustentabilidade, mobilidade urbana, etc. – não se vislumbra, num futuro próximo, grandes alterações nessa equação e os países que não se adaptarem às suas variantes tenderão a continuar atrasados em relação aos mais comprometidos com esses princípios. Isso posto, torna-se possível uma reflexão sobre o presente (e o futuro) do Brasil.
Ainda que sejamos uma nação democrática e que, teoricamente ao menos, tenhamos nossos direitos civis garantidos em vários aspectos, analisando empiricamente constatamos que diversos fatores relacionados ao progresso das nações modernas não são observados por aqui, ou não o são em grau significativo.
Exemplificando:
Estabilidade política não há, devido tanto à falta de sintonia do Legislativo com a população quanto à falta de competência e habilidade política do Executivo para viabilizar seus projetos (quando existe algum projeto). Legitimidade política não se dá meramente por critérios quantitativos, como bem observou, ainda no século XIX, Alexis de Tocqueville.
Sustentação econômica também não existe. Um país que depende do preço das commodities no mercado internacional e que viu sua indústria encolher 3% nos últimos anos – de meros 12% do PIB para ridículos 9% do PIB – não é estável economicamente e a renda do trabalhador brasileiro reflete essa pobreza, assim como os entraves burocráticos e tributários à iniciativa empresarial de pequeno e médio porte.
No que se refere aos direitos sociais, esses só existem para alguns, já que grande parte da população ainda é privada de direitos e serviços básicos, como educação, saúde, saneamento, lazer, transporte, habitação, entre outros que ou não são oferecidos, ou o são com baixa qualidade e/ou alto custo.
Adiciona-se ao triste quadro nossa (i)mobilidade urbana; dramas ambientais como o do Rio Doce e a incapacidade do governo em conter desmatamentos e queimadas; surtos de doenças (velhas e novas) que se repetem anualmente; violência contra a mulher; homofobia; caos urbano; IDH baixo; e tantos outros aspectos; e tentemos responder sem hesitar à pergunta: Somos um país moderno?
Qual você acha que seria a resposta?
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