terça-feira, 19 de janeiro de 2016

Para onde vão as artes?* (Eric Hobsbawm)





A rigor é inconveniente perguntar a um historiador como será a cultura no novo milênio. Somos especialistas no passado. Não estamos ligados ao futuro, e certamente não ao futuro das artes, que passam pelo momento mais revolucionário de sua longa história. Mas, uma vez que não podemos recorrer a profetas profissionais, apesar das gigantescas somas que governos e empresas gastam com seus prognósticos, um historiador pode se aventurar pelo campo da futurologia. Afinal, não obstante todas as sublevações, passado, presente e futuro formam um continuum indivisível.
O que caracteriza as artes em nosso século é sua dependência com a revolução tecnológica, única do ponto de vista histórico, e sua transformação por ela, em particular no tocante às tecnologias de comunicação e reprodução. Pois a segunda força que vem revolucionando a cultura, a sociedade de consumo de massa, é impensável sem a revolução tecnológica, por exemplo, sem filme, sem rádio, sem televisão, sem aparelhos de som portáteis no bolso da camisa. Mas é justamente isso que dá pouca margem a previsões gerais sobre o futuro das artes. As velhas artes visuais, como a pintura e a escultura, até recentemente continuavam sendo puro trabalho manual; não tomaram parte na industrialização — e vem daí, a propósito, a crise em que hoje se encontram. Já a literatura se ajustou à reprodução mecânica meio milênio atrás, nos tempos de Gutenberg. O poema não é feito para ser representado em público (como já foi o caso do poema épico, que por isso caiu em desuso com a invenção da imprensa) nem — como na literatura clássica chinesa — para ser visto como obra de caligrafia. É, simplesmente, uma unidade mecanicamente montada a partir de símbolos alfabéticos. Onde, quando e como o recebemos, no papel, na tela ou em qualquer outra parte, não deixa de ter importância, mas é questão secundária.
A música, entretanto, no século XX, e pela primeira vez na história, rompeu a muralha da comunicação puramente física entre instrumento e ouvido. A esmagadora maioria de sons e ruídos que ouvimos como experiência cultural hoje nos chega por via indireta — mecanicamente reproduzida ou transmitida à distância. Assim, cada uma das Musas tem tido uma experiência diferente com a era da reprodutibilidade de Walter Benjamin, e enfrenta o futuro cada uma à sua maneira. Começo, portanto, com um breve exame das áreas individuais da cultura. Como escritor, talvez me seja permitido examinar primeiro a literatura.
Parto da constatação de que (em contraste com o início do século XX) a humanidade no século XXI não será mais constituída basicamente de analfabetos. Hoje só restam duas partes do mundo onde a maioria das pessoas é analfabeta: a Ásia Meridional (Índia, Paquistão e regiões circunvizinhas) e a África. Educação formal significa livros e leitores. Um mero aumento de 5% no nível de alfabetização significa um aumento de 50 milhões de leitores potenciais, ao menos de livros didáticos. Mais importante ainda, desde meados deste século a maioria da população dos chamados países “desenvolvidos” espera receber educação secundária, e no terço final do século uma percentagem significativa dos grupos etários em questão recebe instrução superior (na Inglaterra hoje a proporção é de cerca de um terço). Dessa maneira, o público para literatura de todos os tipos vem se multiplicando. E, com ele, a propósito, todo o “público instruído” ao qual as artes da alta cultura ocidental se destinam desde o século XVIII . Em números absolutos, o novo público leitor continua a crescer acentuadamente. Até mesmo os meios de comunicação de massa a ele se dirigem.
O filme O paciente inglês, por exemplo, mostra o personagem principal lendo Heródoto, e logo em seguida massas de britânicos e americanos compram esse velho historiador grego, de quem antes sabiam apenas o nome, se tanto.
Essa democratização da matéria escrita deve, necessariamente — como no século XIX —, levar à fragmentação pela ascensão de velhas e novas literaturas nacionais e — também como no século XIX — a uma idade de ouro para tradutores. Pois como, a não ser por meio de traduções, poderiam Shakespeare e Dickens, Balzac e os grandes russos terem se tornado propriedade comum da cultura burguesa internacional? Isso ainda é parcialmente verdade em nossa época. Um John le Carré torna-se best-seller porque é rotineiramente traduzido para trinta ou cinquenta idiomas. Mas a posição hoje é fundamentalmente diferente em dois sentidos.
Em primeiro lugar, como se sabe, a palavra durante algum tempo foi obrigada a recuar diante da imagem, e o mundo escrito e impresso diante do falado na tela. Tiras de quadrinhos e livros ilustrados com um mínimo de texto hoje não se destinam mais somente a iniciantes que estão aprendendo a soletrar. De muito mais peso, no entanto, é o recuo da notícia impressa em face da notícia falada e ilustrada. A imprensa, principal veículo da “esfera pública” de Habermas no século XIX assim como em boa parte do século XX, dificilmente será capaz de manter sua posição no século XXI. Porém, em segundo lugar, a economia e a cultura globais de hoje precisam de uma língua global para suplementar a língua local, e não apenas para uma elite insignificante em termos numéricos, mas para estratos mais vastos da população. Hoje o inglês é a língua global, e provavelmente continuará a ser no século XXI. Uma literatura internacional para especialistas em inglês já está em desenvolvimento. E esse novo inglês-esperanto tem tão pouco a ver com a linguagem literária inglesa quanto o latim de igreja da Idade Média tinha a ver com Virgílio ou Cícero.
Mas nada disso pode deter a ascensão quantitativa da literatura, ou seja, de palavras tipografadas — nem mesmo a das belles lettres. A rigor, eu quase diria que — apesar dos prognósticos pessimistas — o mais importante veículo tradicional da literatura, o livro impresso, sobreviverá sem grande dificuldade, com poucas exceções, como as dos grandes livros de referência, léxicos, dicionários etc., os queridinhos da internet. Em primeiro lugar, não há nada mais fácil e prático de ler do que o livro de bolso pequeno, portátil e claramente impresso inventado por Aldus Manutius em Veneza no século XVI — muito mais fácil e prático do que a cópia impressa de um texto de computador, que, a propósito, é incomparavelmente mais fácil de ler que o tremeluzente texto na tela. Nem mesmo o e-book baseia suas reivindicações numa legibilidade superior, e sim numa maior capacidade de armazenamento e no fato de não ser preciso virar páginas.
Em segundo lugar, o papel impresso é, até a presente data, mais durável do que veículos tecnologicamente mais avançados. A primeira edição d’Os sofrimentos do jovem Werther ainda hoje é legível, mas textos de computador de trinta anos atrás já não o são necessariamente, seja porque — como velhos filmes e fotocópias — têm prazo de validade limitado, seja porque a tecnologia é tão rapidamente superada que os computadores mais recentes não os conseguem ler mais. O progresso triunfal do computador não acabará com o livro, assim como o cinema, o rádio, a televisão e outras novidades tecnológicas não o fizeram.
A segunda das belas-artes que hoje vai muito bem é a arquitetura, e assim continuará no século XXI. Pois a humanidade não pode viver sem edifícios. Pintura é luxo, mas casa é necessidade. Quem projeta e constrói prédios, onde, como, com que materiais, em que estilo, como arquiteto, engenheiro ou computador — tudo isso provavelmente mudará, mas não a necessidade de criar prédios. A rigor, pode-se mesmo dizer que ao longo do século XX o arquiteto, em particular o arquiteto de grandes edifícios públicos, tornou-se o mandachuva do mundo das belas-artes. Ele — em geral é ele, não ela — encontra a expressão mais adequada, ou seja, a mais onerosa e impressionante, para a megalomania da riqueza e do poder, e também do nacionalismo. (Afinal, a região basca acaba de contratar uma sumidade internacional para produzir um símbolo nacional, em outras palavras, um museu de arte não convencional em Bilbao, que abrigará outro símbolo nacional, Guernica, de Picasso, embora, ao pintá-lo, Picasso não tenha pretendido produzir um exemplo de arte regional basca.)
É quase certo que essa tendência continuará no próximo século. Hoje Kuala Lumpur e Xangai já dão provas de que possivelmente têm direito ao status de economias de primeira linha com arranha-céus que batem recordes de altura, e a Alemanha, reunificada, transforma sua nova capital num gigantesco canteiro de obras. Mas que espécie de prédio simbolizará o século XXI? Uma coisa é certa: serão prédios grandes. Na era das massas é pequena a probabilidade de que venham a ser sedes de governo, ou mesmo de grandes corporações internacionais, ainda que estas continuem a dar nome aos arranha-céus. Quase certamente, serão edifícios, ou conjuntos de edifícios, abertos ao público. Antes da era burguesa eram, ao menos no Ocidente, as igrejas. No século XIX eram, caracteristicamente, ao menos nas cidades, as casas de ópera, as catedrais da burguesia, e as estações ferroviárias, as catedrais do progresso tecnológico. (Valeria a pena estudar, um dia, por que, na segunda metade do século XX, a monumentalidade deixou de ser uma característica das estações ferroviárias e de seus sucessores, os aeroportos. Pode ser que ela esteja de volta amanhã.) No fim do nosso milênio há três tipos de edifício ou conjunto de edifícios que funcionam bem como símbolos da esfera pública: primeiro, as grandes arenas e os grandes estádios para shows e esportes; segundo, o hotel internacional; e terceiro, o mais recente desses avanços, os gigantescos edifícios fechados dos novos shopping centers e centros de entretenimento. Se eu tivesse de apostar num desses cavalos, apostaria nas arenas e nos estádios. Mas, se me perguntarem quanto tempo durará a moda, que se alastra desde a construção da Ópera de Sydney, em outras palavras, a moda de projetar esses edifícios com formas inesperadas e fantásticas, não saberei responder.
E que dizer da música? No fim do século XX vivemos num mundo saturado de música. Sons nos acompanham por toda parte, e em particular quando estamos aguardando a vez em espaços fechados — no telefone, num avião ou no cabeleireiro. A sociedade de consumo parece achar que silêncio é crime. Por isso a música nada tem a temer no século XXI. É verdade que soará bem diferente da música do século XX. Já foi fundamentalmente alterada pela eletrônica, o que significa que está em grande parte liberta do talento inventivo e da habilidade técnica do artista individual. A música do século XXI será essencialmente produzida, e chegará aos nossos ouvidos sem muita contribuição humana.
Mas o que ouviremos, de fato? A música clássica, basicamente, vive de um repertório morto. Das cerca de sessenta óperas encenadas na Ópera de Viena em 1996-97, só uma era de compositor nascido no século XX, e a situação não é muito melhor nas salas de concerto. Além disso, a audiência potencial de concertos, que mesmo numa cidade de mais de 1 milhão de habitantes consiste, na melhor hipótese, em perto de 20 mil senhoras e senhores de idade, quase não se renova. Não pode continuar assim indefinidamente. A rigor, enquanto o repertório continuar congelado no tempo, nem mesmo a imensa audiência de ouvintes indiretos poderá salvar o negócio da música clássica. Quantos discos da sinfonia Júpiter, da sinfonia Júpiter, da Winterreise de Schubert ou da Missa solemnis o mercado tem condições de acomodar? Depois da Segunda Guerra Mundial, esse mercado foi salvo três vezes por inovações tecnológicas, ou seja, pelas sucessivas transferências para long-plays, para fitas cassete e para CDs. A revolução tecnológica prossegue, mas o computador e a internet estão praticamente destruindo o direito autoral, assim como o monopólio de produção, e muito provavelmente terão efeito negativo nas vendas. Nada disso significa, de forma nenhuma, o fim da música clássica, mas com alguma dúvida significa uma mudança em seu papel na vida cultural, e com toda a certeza uma mudança em sua estrutura social.
Certa exaustão também pode ser observada hoje na música comercial de massa, área que foi tão viva, tão dinâmica e tão criativa durante este século.
Menciono apenas um indício. Em julho, por exemplo, uma pesquisa entre fãs e especialistas de rock revelou que quase todos os cem “melhores discos de rock da história” vieram dos anos 1960, e praticamente nenhum das duas últimas décadas. Mas até agora a música pop tem sabido se revigorar, repetidamente, e deve ser capaz de fazer o mesmo no novo século.
Portanto, haverá muito canto e muito balanço no século XXI, exatamente como no século XX, ainda que, por vezes, de formas inesperadas.
No que diz respeito às artes visuais, a coisa parece diferente. A escultura consegue levar uma existência miserável na periferia da cultura, pois foi abandonada no decorrer deste século tanto pelo setor público quanto pelo privado como meio de registrar a realidade ou como simbolismo em forma humana. Comparem-se, por exemplo, os cemitérios de hoje com os do século XIX, tão engalanados de monumentos. Nos anos 1870 da Terceira República, mais de 210 monumentos foram erigidos em Paris, ou seja, uma média de três por ano. Um terço dessas estátuas desapareceu durante a Segunda Guerra Mundial, e o massacre de estátuas, como todos sabem, prosseguiu festivamente sob André Malraux por razões estéticas. Além disso, depois da Segunda Guerra Mundial, ao menos fora da esfera soviética, poucos monumentos de guerra foram construídos, em parte porque os nomes dos novos mortos poderiam ser gravados na base dos memoriais da Primeira Guerra Mundial. Os velhos símbolos e alegorias também desapareceram. Em suma, a escultura perdeu seu principal mercado. Tentou se salvar, talvez por analogia com a arquitetura, por meio do gigantismo em espaços públicos — o que é grande impressiona sempre, qualquer que seja a forma — e com a ajuda de alguns talentos genuínos; com que grau de êxito o ano de 2050 saberá julgar melhor do que nós.
A base das artes visuais do Ocidente — em contraste com as artes islâmicas, para citar um exemplo — é a representação da realidade. Fundamentalmente, a arte figurativa sofre, desde meados do século XIX, a concorrência da fotografia, que cumpre sua maior tarefa tradicional, a representação da impressão dos sentidos no olho humano, de modo mais fácil, barato e preciso. Acho que isso explica o surgimento das vanguardas desde os impressionistas, ou seja, de uma pintura além da capacidade técnica da câmera: seja por novas técnicas de representação, pelo expressionismo, pela fantasia e pela visão, e, em último caso, pela abstração, a rejeição do representacionalismo. Essa busca de alternativas foi transformada, pelo ciclo da moda, numa infindável busca do novo, que, é claro, por analogia com a ciência e a tecnologia, era considerado melhor, mais progressista, mais moderno. Esse “choque do novo” (Robert Hughes) perdeu sua legitimidade artística já nos anos 1950, por razões que não disponho de tempo para examinar melhor agora. Além disso, a tecnologia moderna hoje produz arte abstrata, ou ao menos puramente decorativa, tão bem quanto a habilidade artesanal. A pintura está mergulhada, portanto, numa crise a meu ver desesperada; o que não quer dizer que não haverá mais bons pintores, ou mesmo pintores extraordinários. Provavelmente não é por acaso que o prêmio Turner, conferido aos melhores pintores jovens britânicos do ano, tem encontrado cada vez menos pintores entre os candidatos nos últimos dez anos. Este ano (1997) não há nem sequer um entre os quatro candidatos da fase final da competição. A pintura também é ignorada na Bienal de Veneza.
Então, o que fazem os artistas? Fazem o que chamam de “instalações” e vídeos, embora o resultado seja menos interessante do que a obra de cenógrafos e especialistas em publicidade. Jogam com objets trouvés geralmente escandalosos. Têm ideias, por vezes más ideias. As artes visuais dos anos 1990 estão fazendo o caminho de volta da arte para a ideia: só humanos têm ideias, em contraste com lentes e computadores. Arte não é mais o que posso fazer e produzir criativamente, mas o que penso. “Arte conceitual” é, em última análise, subproduto de Marcel Duchamp. E, como Duchamp, com sua revolucionária exposição de um urinol público como “arte ready-made”, essas modas não visam ampliar o campo das belas-artes, mas destruí-lo. São declarações de guerra contra as belas-artes, ou contra a “obra de arte” , criação de um único artista, ícone feito para ser admirado e reverenciado pelo observador e julgado pelos críticos de acordo com critérios estéticos de beleza. Na realidade, o que faz hoje o crítico de arte? Quem ainda usa a palavra “beleza” sem ironia no discurso crítico? Só matemáticos, jogadores de xadrez, repórteres esportivos, admiradores da beleza humana, seja na voz, seja na aparência, conseguem, sem dificuldade, chegar a um consenso sobre “beleza” ou ausência de beleza. Isso não é permitido aos críticos de arte.
O que me parece significativo agora é que, após três quartos de século, artistas plásticos estejam voltando à disposição de espírito dos tempos dadaístas, ou seja, das vanguardas apocalípticas dos anos em torno de 1917-23, que não queriam modernizar a arte como tal, mas liquidá-la. Acredito que eles de alguma forma reconhecem que nosso conceito tradicional de arte está ficando obsoleto. Ainda se aplica à velha arte criada manualmente, que se petrificou no classicismo. Mas simplesmente não se aplica mais ao mundo de impressões sensoriais e sentimentos que hoje inundam a humanidade.
E por duas razões. A primeira é que essa inundação já não pode ser analisada como uma série desconectada de criações artísticas pessoais. Mesmo a alta-costura deixou de ser vista como playground de brilhantes criadores individuais, como um Balenciaga, um Dior, um Gianni Versace, cujas grandes obras, encomendadas como peças exclusivas, não repetíveis, por fregueses ricos, inspirem, e portanto dominem, a moda das massas. Os grandes nomes tornaram-se rótulos comerciais de empresas globais da indústria de atavio geral do corpo humano. A casa de Dior vive não de criações para senhoras ricas, mas de vendas em massa de cosméticos e roupas feitas enobrecidas por seu nome. Essa indústria, como todas as que servem a uma humanidade não mais sob coação da necessidade de subsistência física, tem um elemento criativo, mas não é e não pode ser criação no sentido do velho vocabulário do indivíduo artístico autônomo com aspirações a gênio. A rigor, no novo vocabulário das ofertas de emprego, “criativo” agora dificilmente quer dizer mais do que trabalho de natureza não exclusivamente rotineira.
A segunda razão é que vivemos num mundo de civilização consumista, no qual se espera que a satisfação (de preferência imediata) de todos os desejos humanos determine a estrutura da vida. Haverá uma hierarquia entre as possibilidades de satisfação de desejos? Pode haver? Faz sentido isolar uma ou outra fonte desses deleites e examiná-la separadamente? Drogas e rock, como se sabe, andam juntos desde os anos 1960. A experiência da juventude inglesa nas chamadas raves não consiste separadamente em música, dança, bebidas, drogas e sexo, nas roupas próprias de alguém — adornos para o corpo no auge da moda atual — e nas roupas da massa dos demais nesses festivais órficos, mas em tudo isso junto, já, e não em qualquer outro momento. E são exatamente essas conexões que hoje constituem a experiência cultural típica da maioria das pessoas.
A velha sociedade burguesa foi a era do separatismo nas artes e na alta cultura. Como a religião anteriormente, a arte era “algo mais elevado” , ou um passo na direção de algo mais elevado: ou seja, da “cultura” . A fruição da arte conduzia ao aperfeiçoamento espiritual e era uma espécie de devoção, fosse particular, como a leitura, fosse pública, no teatro, na sala de concertos, no museu, ou em sítios reconhecidos da cultura mundial, como as Pirâmides ou o Panteão. Distinguia-se claramente da vida diária e da simples “diversão” , ao menos até que um dia a “diversão” fosse promovida à cultura, por exemplo, Johann Strauss conduzido por Carlos Kleiber, em vez de Johann Strauss tocado numa taberna vienense, ou o filme B de Hollywood elevado ao status de arte pelos críticos de Paris. Esse tipo de experiência artística ainda existe, é claro, como o prova, entre outras coisas, a nossa participação no Festival de Salzburgo. Mas, em primeiro lugar, não é acessível, culturalmente, a qualquer um, e em segundo, ao menos para a nova geração, deixou de ser uma típica experiência cultural. O muro que separa cultura e vida, reverência e consumo, trabalho e lazer, corpo e espírito, está sendo derrubado. Em outras palavras, “cultura” no sentido burguês criticamente avaliativo do mundo cede a vez à “cultura” no sentido antropológico puramente descritivo.
No fim do século XX, a obra de arte não só se perdeu no dilúvio de palavras, sons e imagens do ambiente universal que um dia seria chamado de “arte” , como também desapareceu na dissolução da experiência estética na esfera em que é impossível distinguir sentimentos desenvolvidos dentro de nós de sentimentos trazidos de fora. Nessas circunstâncias, como seria possível falar em arte?
Quanta paixão por uma música ou por uma pintura hoje se deve a associações — não por ser a canção bonita, mas por ser “a nossa canção”? Não se pode saber, e o papel das artes vivas, ou de sua existência ainda no século XXI, continuará obscuro até que possamos sabê-lo.

* Originariamente uma palestra em alemão nos Diálogos do Festival, Salzburgo, 1996. Traduzida para o inglês por Christine Shuttleworth.

HOBSBAWM, Eric. Tempos Fraturados: cultura e sociedade no século XX. São Paulo: Companhia das Letras, 2013.

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