REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S. Paulo
A Grécia do fim da Idade do Bronze era um lugar tão esquisito que um viajante do tempo familiarizado com os gregos da época de Sócrates e Platão provavelmente ia achar que se perdeu num universo paralelo.
Em vez de filosofia, participação popular na política e soldados-cidadãos, o turista temporal ia se deparar com templos-palácios suntuosos, túmulos faraônicos para a nobreza, escribas controlando a distribuição de cada bezerro e cada grão de cevada.
As pessoas já falavam uma forma arcaica de grego, mas, tirando isso, seria possível jurar que eram babilônios ou egípcios. Nesse mundo, diz Bettany Hughes, viveu a lendária Helena de Troia.
Hughes, historiadora por Oxford, conseguiu construir uma narrativa erudita e envolvente em "Helena de Troia", recém-lançado no Brasil.
Ao tentar investigar a existência de uma "Helena histórica" (mais ou menos como outros tentam recriar o "Jesus histórico" ou o "Sócrates histórico"), a historiadora anda com desteza pelas ondas de choque que surgem do mito da mulher mais bela do mundo.
Espartanas da época clássica, turistas romanos, pintores vitorianos e poetas modernistas --todos, em alguma medida, transformaram Helena em musa.
Mas, para Hughes, o melhor modelo para entender a personagem de Homero são as aristocratas do Egeu na Idade do Bronze tardia, pouco antes do ano 1200 a.C. Elas eram, de fato, retratadas de forma que faria corar suas descendentes mais recatadas --e indefesas-- do período clássico da Grécia.
Poderosas
Afrescos, joias e objetos de arte deixados pela civilização micênica, como é conhecida essa versão "faraônica" da cultura grega por causa de Micenas, seu principal centro, sugerem um papel social significativo para mulheres belas e imponentes.
Seguindo, ao que tudo indica, a moda cretense (povo anterior que os gregos micênicos conquistaram e absorveram culturalmente), muitas delas aparecem com corpetes apertadíssimos que deixavam os seios descobertos --às vezes com mamilos realçados por maquiagem.
Cenas que parecem ser de rituais, envolvendo espadas, joias, o Sol e a Lua, árvores e danças enigmáticas, também são quase sempre protagonizadas por mulheres nos afrescos micênicos.
Uma das damas é retratada com armadura completa e elmo feito de presas de javali na cabeça --apetrecho guerreiro que, em outros exemplos de arte micênica, só aparece associado a homens.
Assim como outros, Hughes postula que as mulheres micênicas tinham o papel de senhoras e sacerdotisas da fertilidade (daí o holofote iconográfico sobre suas curvas e seios), o que lhes conferia prestígio político.
A beleza e a feminilidade da Helena do mito, portanto, sinalizaria algo mais do que mera estética: uma dama poderosa, talvez com status semidivino, venerada por seus súditos.
A segunda peça importante do quebra-cabeças da "Helena histórica" fica do lado leste do estreito de Dardanelos. Escavações na Turquia ao longo dos séculos 19 e 20 revelaram que a localização atribuída tradicionalmente a Troia realmente abrigava uma cidadela imponente no fim da Idade do Bronze, e que a fortaleza foi destruída por volta de 1200 a.C.
Textos nos arquivos do Império Hitita, então estabelecido mais para o interior turco, sugerem que a área de Troia era um ponto de tensão entre micênicos e hititas. Assim, não seria inconcebível que Troia tivesse mesmo sido destruída por atacantes gregos, usando a bela Helena como pretexto.
Dificuldades
O quadro geral faz um bocado de sentido, mas é nesse ponto que a musa de Hughes acaba deixando a historiadora na mão. É um bocado difícil fazer o salto entre os incidentes e personagens específicos de Homero na Ilíada e o quadro relativamente impessoal das relações entre micênicos e asiáticos que aparece nos arquivos hititas.
E certamente não há quaisquer referências diretas a Helena, seu marido corneado Menelau e os guerreiros gregos Aquiles e Odisseu (Ulisses) nos textos diplomáticos do Império Hitita.
Também é possível interpretar a iconografia "feminista" dos micênicos como mero peso morto cultural, já que eles copiaram avidamente os sofisticados cretenses (assim como, mais tarde, os romanos copiaram os gregos) sem necessariamente aderir aos mesmos valores sobre o papel das mulheres.
Por último, como a própria Hughes relata, os palácios micênicos na Grécia continental, bem como outras cidadelas poderosas do Mediterrâneo Oriental, acabaram tendo o mesmo destino de Troia no espaço de uma ou duas gerações: foram arrasadas por aparentes invasores. Não é impossível que, na verdade, os micênicos tenham sido apenas vítimas, tal como os troianos.
Nenhum desses pecadilhos, no entanto, tira o sabor da obra. Tal como na guerra de Troia, Helena é um belo pretexto para um cenário muito maior e mais fascinante do que ela própria.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2009
sábado, 28 de novembro de 2009
Párias e políticos
Ainda que alguns analistas e veículos, como o New York Times, tenham considerado que a recepção ao presidente iraniano, Mahmoud Ahmadinejad, tenha sido uma espécie de afronta do Brasil aos EUA, como um recado segundo o qual o Itamarati assinalaria com a mensagem “fazemos o que queremos”, outras fontes, repercutidas na Folha de São Paulo por Clóvis Rossi, consideram que o Brasil, na verdade, estaria tomando uma atitude de sutil alinhamento com os interesses das grandes potências mundiais.
Afinal, a ONU, enquanto instituição, e o próprio presidente norteamericano, Barack Obama, em diversas ocasiões exortaram o governo brasileiro a utilizar o seu próprio exemplo para convencer o Irã de que Urânio pode ser enriquecido sem problemas, desde que para fins pacíficos. O Brasil possui quase toda a tecnologia necessária para a bomba atômica, mas opta pela utilização do recurso apenas para a produção de energia.
Assim, Lula, que também recebeu os presidentes de Israel e da Autoridade Nacional Palestina (ANP) nas últimas semanas, estaria apenas fazendo o que lhe foi pedido: dialogando com um dos maiores párias da política mundial para convencê-lo a ser mais “paz e amor”.
Capital político para isso nosso presidente tem... e de sobra.
Quanto à outras questões importantes, como a existência legítima de Israel, a verdade histórica do holocausto ou o apoio ao terrorismo islâmico, temas que envolvem direta ou indiretamente o Irã, pelo menos desde a Revolução Islâmica do aiatolá Khomeini, mentor espiritual de Mahmoud, toda a comunidade internacional conhece, e bem, a posição do Brasil. Não é uma visita oficial que mudará nossa tendência histórica à tolerância e ao dialógo.
Afinal, a ONU, enquanto instituição, e o próprio presidente norteamericano, Barack Obama, em diversas ocasiões exortaram o governo brasileiro a utilizar o seu próprio exemplo para convencer o Irã de que Urânio pode ser enriquecido sem problemas, desde que para fins pacíficos. O Brasil possui quase toda a tecnologia necessária para a bomba atômica, mas opta pela utilização do recurso apenas para a produção de energia.
Assim, Lula, que também recebeu os presidentes de Israel e da Autoridade Nacional Palestina (ANP) nas últimas semanas, estaria apenas fazendo o que lhe foi pedido: dialogando com um dos maiores párias da política mundial para convencê-lo a ser mais “paz e amor”.
Capital político para isso nosso presidente tem... e de sobra.
Quanto à outras questões importantes, como a existência legítima de Israel, a verdade histórica do holocausto ou o apoio ao terrorismo islâmico, temas que envolvem direta ou indiretamente o Irã, pelo menos desde a Revolução Islâmica do aiatolá Khomeini, mentor espiritual de Mahmoud, toda a comunidade internacional conhece, e bem, a posição do Brasil. Não é uma visita oficial que mudará nossa tendência histórica à tolerância e ao dialógo.
sexta-feira, 20 de novembro de 2009
15 e 20 de novembro
O mês de novembro é um mês, do ponto de vista cívico, extremamente importante no Brasil. É em novembro que comemoramos um dos mais importantes passos de nossa história em direção à construção de uma realidade democrática e pluralista, a Proclamação da República. É também em novembro que, relembrando a morte de Zumbi, sucessor de Ganga Zumba como rei do Mocambo do Macaco, sede da imensa comunidade denominada Quilombo dos Palmares, se comemora no Brasil o Dia da Consciência Negra. Dia voltado à reflexão sobre o papel do negro em nossa sociedade e sua importância na construção de nossa identidade.
Ainda que sutil, a semelhança entre essas duas datas cívicas é bem maior do que se imagina, afinal, o ideal republicano é o ideal da inclusão, uma vez que o modelo escravista e estamental não condiz com os princípios da ideologia iluminista, que defende a organização republicana como alternativa ao despotismo.
Nos EUA, a contradição entre república e escravismo foi uma das causas da Guerra de Secessão, que libertou os escravos naquele país. No Brasil, a Abolição e a República foram determinadas com pouco mais de um ano de distância (13 de maio de 1888 e 15 de novembro de 1889).
Construir um país no qual brancos e negros, independentemente de sua posição social ou opção religiosa, possam conviver em harmonia e partilhar das mesmas oportunidades é sim, um ideal que se “alevanta” tanto no 15 quanto no 20 de novembro, e esse ideal deve ser sempre a bandeira de uma nação que é, ou pretende ser, moderna.
quarta-feira, 11 de novembro de 2009
Utopus
E se o apagão de ontem fosse mundial e de 15 dias? A ONU podia aderir e promover essa ideia a cada 10 anos. 15 dias de higiene mental. Sem influência externa e nem energia gerada para que cada um pudesse mergulhar em si mesmo e compreender a condição humana. Seríamos confrontados com o auto-conhecimento.
sábado, 24 de outubro de 2009
Violência
A violência urbana é um problema que aflige diversas cidades do mundo, com maior ou menor intensidade. Nesta semana, episódios referentes à guerra entre facções criminosas no Rio de Janeiro tiveram amplo destaque na mídia nacional e até no exterior, gerando questionamentos inclusive sobre a capacidade da cidade do Rio de Janeiro em manter a ordem durante a realização dos Jogos Olímpicos de 2016 na cidade.
Nos EUA, Chicago, Los Angeles e Nova Iorque são exemplos de cidades que estiveram totalmente dominadas por gangsteres ao longo de muitos anos, assim como assoladas por pequenos delitos e crimes diversos. Em todos esses casos, com destaque para NY, a atuação direta e ostensiva da polícia no combate aos criminosos associada à políticas públicas preventivas nas áreas de educação, urbanismo e cultura, promoveu resultados concretos e significativos em um espaço de tempo relativamente curto, demonstrando ser possível resolver o problema da segurança e servindo de exemplo para o Rio de Janeiro que precisa, urgentemente, garantir a paz e a segurança de seus cidadãos.
Vale destacar que, no Haiti, o exército brasileiro não apenas promoveu a paz como conquistou a simpatia da população em favelas de Porto Príncipe. Só que a opinião pública daqui não aceitaria que o exército atuasse em casa da forma como atuou naquele país caribenho. Provavelmente, os mesmos que reclamam da violência seriam os primeiros à questionar a legalidade da ação.
Nos EUA, Chicago, Los Angeles e Nova Iorque são exemplos de cidades que estiveram totalmente dominadas por gangsteres ao longo de muitos anos, assim como assoladas por pequenos delitos e crimes diversos. Em todos esses casos, com destaque para NY, a atuação direta e ostensiva da polícia no combate aos criminosos associada à políticas públicas preventivas nas áreas de educação, urbanismo e cultura, promoveu resultados concretos e significativos em um espaço de tempo relativamente curto, demonstrando ser possível resolver o problema da segurança e servindo de exemplo para o Rio de Janeiro que precisa, urgentemente, garantir a paz e a segurança de seus cidadãos.
Vale destacar que, no Haiti, o exército brasileiro não apenas promoveu a paz como conquistou a simpatia da população em favelas de Porto Príncipe. Só que a opinião pública daqui não aceitaria que o exército atuasse em casa da forma como atuou naquele país caribenho. Provavelmente, os mesmos que reclamam da violência seriam os primeiros à questionar a legalidade da ação.
segunda-feira, 5 de outubro de 2009
Pra pensar
Se os radicais fundamentalistas tivessem razão, eles seriam racionais, e não radicais fundamentalistas.
PS: O blog anda meio abandonado, muito trampo esses tempos. Espero em breve poder administrar o tempo melhor e me dedicar mais à esse espaço. Aguardem divagações esporádicas ou me sigam no twitter (ConradoFB).
PS: O blog anda meio abandonado, muito trampo esses tempos. Espero em breve poder administrar o tempo melhor e me dedicar mais à esse espaço. Aguardem divagações esporádicas ou me sigam no twitter (ConradoFB).
sábado, 5 de setembro de 2009
Por que no te calas?
O recente fracasso nas negociações da União das Nações Sul-americanas – UNASUL, nos debates do último final de semana realizados em Bariloche, na Argentina, no que se refere às bases que a Colômbia pretende ceder aos EUA, explicita um dos maiores problemas do continente desde sua independência em relação às metrópoles européias: o populismo.
Esse problema ficou muito bem demonstrado quando o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que o continente deveria temer a atuação dos norte-americanos, principalmente no que diz respeito ao petróleo, destacando os “problemas” que o Brasil poderia ter nessa área devido às descobertas recentes no país. Enquanto Chávez afirmava que esse era o interesse maior dos EUA, foi interrompido pelo presidente do Peru, Alan Garcia, que, para gargalhada geral, afirmou que esse não era um problema verdadeiro, já que “você, Hugo Chávez, vende todo o petróleo de que eles precisam”. Vale destacar que a própria Venezuela é um dos maiores fornecedores de petróleo para o país de Obama.
A contradição do mandatário venezuelano expõe a contradição entre o discurso e a prática de alguns dos líderes políticos do continente que, segundo o próprio presidente Lula afirmou, “estão mais preocupados em produzir manchetes para os jornais do que em encontrar soluções concretas para os nossos problemas”.
Cenário parecido podia ser observado na Europa, no início do século XX, período que culminou com duas tragédias: a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais. Lá, na época, também havia populismo em excesso.
Esse problema ficou muito bem demonstrado quando o presidente venezuelano, Hugo Chávez, afirmou que o continente deveria temer a atuação dos norte-americanos, principalmente no que diz respeito ao petróleo, destacando os “problemas” que o Brasil poderia ter nessa área devido às descobertas recentes no país. Enquanto Chávez afirmava que esse era o interesse maior dos EUA, foi interrompido pelo presidente do Peru, Alan Garcia, que, para gargalhada geral, afirmou que esse não era um problema verdadeiro, já que “você, Hugo Chávez, vende todo o petróleo de que eles precisam”. Vale destacar que a própria Venezuela é um dos maiores fornecedores de petróleo para o país de Obama.
A contradição do mandatário venezuelano expõe a contradição entre o discurso e a prática de alguns dos líderes políticos do continente que, segundo o próprio presidente Lula afirmou, “estão mais preocupados em produzir manchetes para os jornais do que em encontrar soluções concretas para os nossos problemas”.
Cenário parecido podia ser observado na Europa, no início do século XX, período que culminou com duas tragédias: a 1ª e a 2ª Guerras Mundiais. Lá, na época, também havia populismo em excesso.
segunda-feira, 10 de agosto de 2009
Voz
Ao longo da História, diferentes formas de “disputa” foram utilizadas no jogo político. Algumas “normais”, outras inusitadas, eram formas encontradas pelos homens com direitos políticos para manifestar, ou até impor, suas idéias.
Na Grécia Antiga, mais especificamente na cidade de Atenas e, com versões distintas, em outras localidades do mundo grego, o debate era a forma mais utilizada. Ainda que restrito aos chamados “bem-nascidos” do sexo masculino, que possuíam direitos civis e políticos plenos, o debate em áreas públicas, como praças e assembléias, construiu a identidade política grega e, em função disso, foi nessa civilização que nasceram e se desenvolveram a retórica e a dialética, dois extremos da oratória, já que sem ela, um cidadão grego estaria politicamente enfraquecido.
Já na França revolucionária, na transição do século XVIII para o XIX, a oratória não era tão rica e também se manifestava de maneira um pouco mais violenta. Nessa época, defenestrar (jogar pela janela) ou guilhotinar os adversários eram práticas muito comuns.
Nos tempos recentes, além da imprensa livre, do direito, do conceito de cidadania e de outras conquistas democráticas, a principal ferramenta política é o voto. Civilizado, organizado e, em alguns casos (nos países realmente democráticos), justo, o voto é a política feita da maneira mais limpa (ou menos suja) possível e, sendo assim, representa um grande avanço na formatação política da humanidade.
Pena que alguns não se conformem com a voz das urnas, que é, em última instância, a vox populi.
Na Grécia Antiga, mais especificamente na cidade de Atenas e, com versões distintas, em outras localidades do mundo grego, o debate era a forma mais utilizada. Ainda que restrito aos chamados “bem-nascidos” do sexo masculino, que possuíam direitos civis e políticos plenos, o debate em áreas públicas, como praças e assembléias, construiu a identidade política grega e, em função disso, foi nessa civilização que nasceram e se desenvolveram a retórica e a dialética, dois extremos da oratória, já que sem ela, um cidadão grego estaria politicamente enfraquecido.
Já na França revolucionária, na transição do século XVIII para o XIX, a oratória não era tão rica e também se manifestava de maneira um pouco mais violenta. Nessa época, defenestrar (jogar pela janela) ou guilhotinar os adversários eram práticas muito comuns.
Nos tempos recentes, além da imprensa livre, do direito, do conceito de cidadania e de outras conquistas democráticas, a principal ferramenta política é o voto. Civilizado, organizado e, em alguns casos (nos países realmente democráticos), justo, o voto é a política feita da maneira mais limpa (ou menos suja) possível e, sendo assim, representa um grande avanço na formatação política da humanidade.
Pena que alguns não se conformem com a voz das urnas, que é, em última instância, a vox populi.
quinta-feira, 6 de agosto de 2009
Senado
Infelizmente, ainda que a existência do poder representativo seja fundamental para o desenvolvimento quantitativo e qualitativo de um povo, pressuposto dos direitos individuais, no Brasil os "nobres" membros do Senado, instância tão antiga quanto a própria República (desde Roma), se afogam em um mar de lama com esquetes que nem o Monthy Phyton imaginaria.
Farinha do mesmo saco também briga. Calheiros X Jereissati:
http://www.youtube.com/watch?v=MmescFJR2VQ
Farinha do mesmo saco também briga. Calheiros X Jereissati:
http://www.youtube.com/watch?v=MmescFJR2VQ
segunda-feira, 27 de julho de 2009
Grupo estuda limitar o desenvolvimento da inteligência artificial
Do "NEW YORK TIMES"
Robôs que sozinhos podem abrir portas ou então encontrar energia quando precisam ser recarregados.Impressionados e alarmados pelos avanços da inteligência artificial, um grupo de cientistas da computação está debatendo como eles podem colocar limites nas pesquisas que poderão levar a perda do controle humano em determinadas tarefas.Apesar de os cientistas concordarem que a criação de um HAL, o robô do filme "2001:Uma Odisseia no Espaço", ainda está longe, cada vez mais, esses novos equipamentos vão forçar os humanos a conviver com as inteligências artificiais.O que vai ocorrer se a tecnologia da inteligência artificial for usada para minar as informações pessoais dos telefones inteligentes?Para Paul Berg, vencedor do Nobel de química em 1980, é importante que a comunidade científica promova o engajamento do público nessas questões, antes que ações alarmistas e de oposição comecem a surgir.Para Eric Horvitz, pesquisador da Microsoft que já organizou importantes eventos sobre o tema este ano, mais cedo ou mais tarde será preciso criar normas para o uso e o desenvolvimento das tecnologias artificiais.Mesmo assim, o cientista afirma que esses projetos vão beneficiar os humanos. Como a criação de um robô que, por exemplo, responda com empatia ao portador de alguma doença.
Robôs que sozinhos podem abrir portas ou então encontrar energia quando precisam ser recarregados.Impressionados e alarmados pelos avanços da inteligência artificial, um grupo de cientistas da computação está debatendo como eles podem colocar limites nas pesquisas que poderão levar a perda do controle humano em determinadas tarefas.Apesar de os cientistas concordarem que a criação de um HAL, o robô do filme "2001:Uma Odisseia no Espaço", ainda está longe, cada vez mais, esses novos equipamentos vão forçar os humanos a conviver com as inteligências artificiais.O que vai ocorrer se a tecnologia da inteligência artificial for usada para minar as informações pessoais dos telefones inteligentes?Para Paul Berg, vencedor do Nobel de química em 1980, é importante que a comunidade científica promova o engajamento do público nessas questões, antes que ações alarmistas e de oposição comecem a surgir.Para Eric Horvitz, pesquisador da Microsoft que já organizou importantes eventos sobre o tema este ano, mais cedo ou mais tarde será preciso criar normas para o uso e o desenvolvimento das tecnologias artificiais.Mesmo assim, o cientista afirma que esses projetos vão beneficiar os humanos. Como a criação de um robô que, por exemplo, responda com empatia ao portador de alguma doença.
domingo, 26 de julho de 2009
Domingo eu quero ver...
Domingo é o dia em que as multidões se informam. Se sexta é o dia da cerveja, domingo é o dia do enraizamento dos clichês...
sexta-feira, 17 de julho de 2009
O continente dos gorilas
A América Latina, desde o final da Guerra-Fria - que opunha os blocos capitalista e comunista em uma disputa geopolítica e imperialista liderada de um lado pelos EUA e, de outro, pela URSS - não via a atuação direta dos chamados “gorilas” resultar em golpes de Estado com o apoio do exército serem bem sucedidos na subversão da ordem democrática, como está sendo o caso, nas últimas semanas, de Honduras.
Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, assim como diversos países da América Central, com maior ou menor intensidade, viveram golpes e ditaduras militares nos anos 60, 70 e 80, alguns até os 90, dentro de um contexto geopolítico internacional que, ainda que não justifique, embasava a medida ideologicamente. Mas esse tempo, felizmente, já passou, ou parecia já ter passado, até que movimentações na Venezuela e, geralmente, em seus aliados, reacenderam no continente a chama do revanchismo e do golpismo, prejudicando os projetos de integração política, econômica e de infraestrutura na América Latina.
O argumento usado pelos opositores em Honduras é a tentativa do presidente deposto de alterar a constituição do país através de um plebiscito. Já o governo deposto argumenta que, através do plebiscito, seriam legitimadas democraticamente as alterações constitucionais.
Sem entrar no mérito da questão de forma parcial, ambos os lados atentam contra a lei. Um, por querer legitimar suas ações através de uma possível “onda plebiscitária”. O outro, por não aceitar ouvir as vozes das ruas, do povo, que, em última análise, deveria ser o agente principal em qualquer regime democrático.
O mais sensato seria que ambos os lados agissem dentro da lei vigente, respeitando as normas políticas instituídas e, para o caso de reformas, fazê-las dentro da legalidade e através de um amplo debate com a sociedade civil e seus representantes, antes mesmo da realização de qualquer plebiscito ou, mais ainda, de um golpe.
A comunidade internacional espera que os problemas da região sejam resolvidos sem traumas profundos e sem despertar, no nosso já sofrido continente, a tradição, aparentemente dormente, de intervenções armadas ou ilegais contra governos eleitos.
Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, assim como diversos países da América Central, com maior ou menor intensidade, viveram golpes e ditaduras militares nos anos 60, 70 e 80, alguns até os 90, dentro de um contexto geopolítico internacional que, ainda que não justifique, embasava a medida ideologicamente. Mas esse tempo, felizmente, já passou, ou parecia já ter passado, até que movimentações na Venezuela e, geralmente, em seus aliados, reacenderam no continente a chama do revanchismo e do golpismo, prejudicando os projetos de integração política, econômica e de infraestrutura na América Latina.
O argumento usado pelos opositores em Honduras é a tentativa do presidente deposto de alterar a constituição do país através de um plebiscito. Já o governo deposto argumenta que, através do plebiscito, seriam legitimadas democraticamente as alterações constitucionais.
Sem entrar no mérito da questão de forma parcial, ambos os lados atentam contra a lei. Um, por querer legitimar suas ações através de uma possível “onda plebiscitária”. O outro, por não aceitar ouvir as vozes das ruas, do povo, que, em última análise, deveria ser o agente principal em qualquer regime democrático.
O mais sensato seria que ambos os lados agissem dentro da lei vigente, respeitando as normas políticas instituídas e, para o caso de reformas, fazê-las dentro da legalidade e através de um amplo debate com a sociedade civil e seus representantes, antes mesmo da realização de qualquer plebiscito ou, mais ainda, de um golpe.
A comunidade internacional espera que os problemas da região sejam resolvidos sem traumas profundos e sem despertar, no nosso já sofrido continente, a tradição, aparentemente dormente, de intervenções armadas ou ilegais contra governos eleitos.
quarta-feira, 8 de julho de 2009
O Homem das Multidões - Edgar Allan Poe
“Ce grand malheur, de ne pouvoir être Seul” - La Bruyère
De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que “es lãsst sich nicht lesen” – não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada.
Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, estava eu sentado ante a grande janela do Café D... em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibiniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espionando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Era esta uma das artérias principais da cidade e regorgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação assumiu um feitio abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram de movimentos irrequietos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre estas duas classes além do que já observei. Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas – os Eupátridas e os lugares-comuns da sociedade, - homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, dirigindo negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à mingua de melhor termo, pode-se dar o nome de “escrivanismo”, a aparência deles parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bom tom. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas – e isto, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita levantada, devido ao hábito de ali prenderem caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para porem ou tirarem o chapéu e que traziam relógios com curtas cadeias de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável.
Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores – e não foram poucos os que pude discernir – eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais janota dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornadas dos clérigos, incapazes de provocarem a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa compleição viscosa e trigueira, certa membranosa opacidade dos olhos, assim como o palor da tez e o apertado dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia destes velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público – de um lado, os janotas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama a “gente de bem”, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontei judeus bufarinheiros, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, é que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de qualquer consolação ocasional, de qualquer esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contacto direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade; a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, o rosto contundido e os olhos virados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, lábios grossos e sensuais, a face apopleticamente rubicunda; outros, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, ainda agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além destes todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, camelôs, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies – tudo isto cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desaparecendo com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergindo com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil, de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um lustro trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido – como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fanáticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, podia eu ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco a setenta anos de idade), um semblante que, de imediato, se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira qualquer coisa que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembrando-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do demônio. Enquanto tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreendido, fascinado. “Que extraordinária história – disse a mim mesmo – não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri o caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-se dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima abaixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um bizarro efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zum-zum decuplicaram. De minha parte, não liguei muito para a chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido para aquele que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a populaça de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob os cenhos franzidos em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver, que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco comparativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade para acompanha-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho e ali retomou ele suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento percebeu ele que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não separar-me dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à volta de si, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando e sua antiga inquietude e vacilação voltara a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade; para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. À débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim, deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente, ao dobrarmos uma esquina, uma clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança – um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fecha-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente o mais populoso mercado da cidade, a rua do Hotel D..., apresentava esta uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
“Este velho – disse comigo, por fim – é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo; nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus Animae e talvez seja uma das mercês de Deus que es lãsst sich nicht lesen”.
Edgar Allan Poe
De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que “es lãsst sich nicht lesen” – não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada.
Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, estava eu sentado ante a grande janela do Café D... em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibiniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espionando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Era esta uma das artérias principais da cidade e regorgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação assumiu um feitio abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram de movimentos irrequietos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre estas duas classes além do que já observei. Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas – os Eupátridas e os lugares-comuns da sociedade, - homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, dirigindo negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à mingua de melhor termo, pode-se dar o nome de “escrivanismo”, a aparência deles parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bom tom. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas – e isto, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita levantada, devido ao hábito de ali prenderem caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para porem ou tirarem o chapéu e que traziam relógios com curtas cadeias de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável.
Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores – e não foram poucos os que pude discernir – eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais janota dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornadas dos clérigos, incapazes de provocarem a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa compleição viscosa e trigueira, certa membranosa opacidade dos olhos, assim como o palor da tez e o apertado dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia destes velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público – de um lado, os janotas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama a “gente de bem”, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontei judeus bufarinheiros, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, é que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de qualquer consolação ocasional, de qualquer esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contacto direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade; a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, o rosto contundido e os olhos virados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, lábios grossos e sensuais, a face apopleticamente rubicunda; outros, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, ainda agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além destes todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, camelôs, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies – tudo isto cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desaparecendo com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergindo com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil, de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um lustro trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido – como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fanáticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, podia eu ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco a setenta anos de idade), um semblante que, de imediato, se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira qualquer coisa que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembrando-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do demônio. Enquanto tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreendido, fascinado. “Que extraordinária história – disse a mim mesmo – não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri o caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-se dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima abaixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um bizarro efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zum-zum decuplicaram. De minha parte, não liguei muito para a chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido para aquele que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a populaça de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob os cenhos franzidos em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver, que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco comparativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade para acompanha-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho e ali retomou ele suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento percebeu ele que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não separar-me dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à volta de si, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando e sua antiga inquietude e vacilação voltara a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade; para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. À débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim, deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente, ao dobrarmos uma esquina, uma clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança – um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fecha-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente o mais populoso mercado da cidade, a rua do Hotel D..., apresentava esta uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
“Este velho – disse comigo, por fim – é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo; nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus Animae e talvez seja uma das mercês de Deus que es lãsst sich nicht lesen”.
Edgar Allan Poe
segunda-feira, 22 de junho de 2009
Democracia
Uma das maiores conquistas da humanidade é a representatividade. Ainda que falho, muitas vezes corrupto e sujeito à mediocridade, o sistema representativo é, quando honesto, inquestionável. Afinal, se um governo existe para me representar, e não para me tiranizar, supõe-se que ele tenha que ter sido nomeado por mim – e pelos outros que ele representa – para o cargo, incluindo-se aí tanto os benefícios quanto as responsabilidades do mesmo. Caso contrário, tem que cair. Seja o síndico, o técnico, o mestre ou o presidente. Justo e simples.
Ainda que existam fatores diversos que possibilitem a “manipulação” do processo, existe a lei para regulamentar e julgar os casos em geral e especificamente, através de uma legislação que se pauta pela Constituição que, por sua vez, foi feita pelos tais representantes mencionados.
Além disso, a democracia participativa seria inviável levando-se em conta 6 bilhões de terráqueos e aumentando. A maioria não vai nem na reunião de pais do colégio dos filhos.
Sendo assim, se um povo, ou pelo menos a parte dele que se manifesta e, portanto, se interessa, expressa publica e veementemente que não quer mais ser representando por alguém, ou alguma instituição qualquer – e tem embasamento legal ou moral para tal reivindicação – o mínimo que se espera é que esse alguém caia fora o quanto antes. A menos que ele se ache acima da lei e, portanto, da legalidade representativa.
Quem deve escolher seus governantes são os governados que, por sua vez, devem corresponder, ainda que minimamente, às expectativas.
Ainda que existam fatores diversos que possibilitem a “manipulação” do processo, existe a lei para regulamentar e julgar os casos em geral e especificamente, através de uma legislação que se pauta pela Constituição que, por sua vez, foi feita pelos tais representantes mencionados.
Além disso, a democracia participativa seria inviável levando-se em conta 6 bilhões de terráqueos e aumentando. A maioria não vai nem na reunião de pais do colégio dos filhos.
Sendo assim, se um povo, ou pelo menos a parte dele que se manifesta e, portanto, se interessa, expressa publica e veementemente que não quer mais ser representando por alguém, ou alguma instituição qualquer – e tem embasamento legal ou moral para tal reivindicação – o mínimo que se espera é que esse alguém caia fora o quanto antes. A menos que ele se ache acima da lei e, portanto, da legalidade representativa.
Quem deve escolher seus governantes são os governados que, por sua vez, devem corresponder, ainda que minimamente, às expectativas.
quarta-feira, 17 de junho de 2009
segunda-feira, 15 de junho de 2009
Teerã
JON LEYNE (BBC)
Com a continuação de manifestações contra os resultados da eleição presidencial no Irã, a situação na capital, Teerã, está se tornando imprevisível e potencialmente explosiva. Durante todo este domingo (13), multidões se concentraram em diversas áreas, em protestos que não haviam sido organizados.
Em congestionamentos, motoristas tocavam a buzina para expressar oposição ao governo. Multidões nas calçadas cantavam e faziam sinais de vitória com as mãos.
Em alguns lugares, a polícia compareceu em grande número. Alguns policiais estavam aparelhados para enfrentar confrontos. Outros apareceram na garupa de motocicletas. Aparentemente, eles receberam instruções claras para não abrir fogo. Embora fosse possível ouvir tiros ocasionais, a maior parte da polícia usava cassetetes de maneira brutal.
É difícil obter um quadro confiável da dimensão dos protestos em Teerã e, mais ainda, no resto do país. Mas eles se propagaram rapidamente durante a noite. O barulho da multidão foi ouvido até mesmo nos bairros de classe média, que costumam ser mais sossegados. Muitos iranianos subiram nos telhados das casas para gritar slogans como "abaixo o ditador".
Os protestos se transformaram em um desafio não apenas ao resultado das eleições, não apenas ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, mas também ao líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei. Isso significa um desafio a toda a base da república islâmica. Durante dois anos, pude observar jovens e ambiciosos iranianos tocando suas vidas em meio a uma crescente frustração.
Eles sentem que o sistema sufoca suas aspirações. Agora, eles acreditam que sua inteligência e seu orgulho foram insultados por um resultado eleitoral que muitos iranianos acreditam ter sido fraudado de uma forma grosseira. E a forma quase despreocupada com que o presidente Ahmadinejad rejeitou as reclamações apenas aumentou a raiva dos iranianos.
Sem precedentes
Apesar dos protestos, o presidente Ahmadinejad ainda tem muitos partidários. Muitos deles apareceram no comício de vitória que o presidente fez no centro de Teerã na tarde de domingo. Ele concentrou seu discurso em críticas a governos de outros países e à imprensa internacional, responsabilizando-os pelos problemas na eleição.
Agora existe o risco de que os dois lados das manifestações no Irã se enfrentem. E muitos temem que o governo dê a autorização para que a polícia abra fogo se a situação ficar fora de controle. Mas ainda é difícil avaliar que tipo de concessão política poderá ser feita.
Ahmadinejad continua com sua postura de desafio, confiante no apoio do líder supremo. E a oposição vai descobrir que o recurso (contra o resultado das eleições) tem mínimas chances de ser bem sucedido. É uma situação sem precedentes nos 30 anos de história da república islâmica e é impossível prever seu resultado.
Com a continuação de manifestações contra os resultados da eleição presidencial no Irã, a situação na capital, Teerã, está se tornando imprevisível e potencialmente explosiva. Durante todo este domingo (13), multidões se concentraram em diversas áreas, em protestos que não haviam sido organizados.
Em congestionamentos, motoristas tocavam a buzina para expressar oposição ao governo. Multidões nas calçadas cantavam e faziam sinais de vitória com as mãos.
Em alguns lugares, a polícia compareceu em grande número. Alguns policiais estavam aparelhados para enfrentar confrontos. Outros apareceram na garupa de motocicletas. Aparentemente, eles receberam instruções claras para não abrir fogo. Embora fosse possível ouvir tiros ocasionais, a maior parte da polícia usava cassetetes de maneira brutal.
É difícil obter um quadro confiável da dimensão dos protestos em Teerã e, mais ainda, no resto do país. Mas eles se propagaram rapidamente durante a noite. O barulho da multidão foi ouvido até mesmo nos bairros de classe média, que costumam ser mais sossegados. Muitos iranianos subiram nos telhados das casas para gritar slogans como "abaixo o ditador".
Os protestos se transformaram em um desafio não apenas ao resultado das eleições, não apenas ao presidente Mahmoud Ahmadinejad, mas também ao líder supremo do Irã, o aiatolá Ali Khamenei. Isso significa um desafio a toda a base da república islâmica. Durante dois anos, pude observar jovens e ambiciosos iranianos tocando suas vidas em meio a uma crescente frustração.
Eles sentem que o sistema sufoca suas aspirações. Agora, eles acreditam que sua inteligência e seu orgulho foram insultados por um resultado eleitoral que muitos iranianos acreditam ter sido fraudado de uma forma grosseira. E a forma quase despreocupada com que o presidente Ahmadinejad rejeitou as reclamações apenas aumentou a raiva dos iranianos.
Sem precedentes
Apesar dos protestos, o presidente Ahmadinejad ainda tem muitos partidários. Muitos deles apareceram no comício de vitória que o presidente fez no centro de Teerã na tarde de domingo. Ele concentrou seu discurso em críticas a governos de outros países e à imprensa internacional, responsabilizando-os pelos problemas na eleição.
Agora existe o risco de que os dois lados das manifestações no Irã se enfrentem. E muitos temem que o governo dê a autorização para que a polícia abra fogo se a situação ficar fora de controle. Mas ainda é difícil avaliar que tipo de concessão política poderá ser feita.
Ahmadinejad continua com sua postura de desafio, confiante no apoio do líder supremo. E a oposição vai descobrir que o recurso (contra o resultado das eleições) tem mínimas chances de ser bem sucedido. É uma situação sem precedentes nos 30 anos de história da república islâmica e é impossível prever seu resultado.
terça-feira, 9 de junho de 2009
Auschwitz é bonito? - por João Pereira Coutinho (Folha de São Paulo - 09/06/2009)
A pergunta é inevitável: será que a estética é independente de considerações éticas?
GOSTO DE polêmicas. Elas picam o cérebro como certos toureiros picam o touro. E o touro reage.Portugal decidiu embarcar em aventura conhecida: eleger Sete Maravilhas que os portugueses, povo de marinheiros, espalharam pelo mundo. Existe uma lista inicial com 27 monumentos. O Brasil, recordista total, está representado com o Convento de Santo Antônio e Ordem Terceira, no Recife; com o Mosteiro de São Bento, no Rio; com o Convento de São Francisco, na Bahia; com o Mosteiro de São Bento, em Olinda; com a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; com o Forte do Príncipe da Beira, na atual Rondônia; e com o Santuário do Bom Jesus, em Congonhas.Subitamente, a indignação explodiu: historiadores de todo o mundo acusaram a organização do concurso de ocultar a terrível verdade. Para os indignados, alguns dos monumentos estão marcados pela vergonha da escravatura. É o caso da Fortaleza de São Jorge da Mina, em África, entreposto preferencial do tráfico. Os historiadores querem respeito pela história e exigem referência ao passado vergonhoso de Portugal. Que dizer? Duas coisas. A primeira, óbvia, é que a intenção dos historiadores não é simplesmente científica. Ela insere-se na vetusta tradição contemporânea de pedir desculpas pelos crimes dos antepassados, como se a culpa fosse uma espécie de vírus que passa de geração em geração. Será? Em caso afirmativo, não há nenhum motivo para pararmos nos portugueses. Pior: não há nenhum motivo para pararmos na Europa. Se a Europa colonizou África, outros povos colonizaram a Europa anteriormente. A história da civilização é, como diria Churchill, a história das suas guerras: da forma sucessiva como sucessivas civilizações foram conquistando e explorando as outras. Falar dos crimes do passado é falar de todos os crimes. E quem, honestamente, fica inocente nesse revisionismo total? Se a ideia dos historiadores é expiar as culpas passadas, melhor seria que denunciassem os crimes presentes: em África, na Ásia, mesmo na América Latina. Como conta E. Benjamin Skinner, em obra obrigatória sobre a matéria ("A Crime So Monstrous"), existem hoje mais escravos do que em qualquer outro período da história humana. Skinner não fala do simples tráfico de mulheres, a única forma de "escravatura" que parece incomodar as consciências progressistas.Skinner fala da servidão que existe em África, onde homens, mulheres e crianças são capturados em cenários de guerra e obrigados a trabalhar em campos ou pedreiras. Fala dos 10 milhões de escravos na Índia, obrigados a trabalho duro para pagar "dívidas transgeracionais". Pedir desculpas pelos crimes dos antepassados é um exercício inútil e, além disso, perfeitamente analfabeto. Mas se os historiadores que protestam cometem o erro anacrônico de julgar o passado com as categorias do presente, a verdade é que também não concordo com os organizadores do concurso que defendem as "maravilhas" com critérios exclusivamente estéticos. A pergunta é inevitável: será que a estética é independente de qualquer consideração ética? Ou, dito ainda de outra forma, será possível apreciar determinadas obras artísticas sem perder tempo com a dimensão imoral que paira sobre elas? Pessoalmente, sempre tive dúvidas. Acredito que Leni Riefenstahl seja um caso de talento no documentarismo germânico do século 20. Filmes como "O Triunfo da Vontade" ou "Olympia", no seu rigor iconográfico e na exaltação da força e da ordem, podem ser esteticamente impressionantes. Mas será possível apreciar Riefenstahl pelas qualidades puramente estéticas dos seus filmes? Será possível iludir, ou esquecer, que a "exaltação da força e da ordem" servia uma causa particular? Uma causa criminosa particular? Não creio. Fechar a discussão estética nas qualidades puramente formais de uma obra implicaria posições moralmente insustentáveis. Implicaria que, no limite, fosse possível elogiar a belíssima arquitetura das câmaras de gás de Auschwitz sem atender aos milhões de seres humanos que foram assassinados debaixo de tanta "beleza". Na polêmica das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, ambos os lados chafurdam no erro e na hipocrisia. Nenhum país deve pedir desculpas pela sua história. Mas nenhum país deve reduzir a sua história a uma simpática galeria de adornos. Os fantasmas não nos perdoariam. jpcoutinho@folha.com.br
GOSTO DE polêmicas. Elas picam o cérebro como certos toureiros picam o touro. E o touro reage.Portugal decidiu embarcar em aventura conhecida: eleger Sete Maravilhas que os portugueses, povo de marinheiros, espalharam pelo mundo. Existe uma lista inicial com 27 monumentos. O Brasil, recordista total, está representado com o Convento de Santo Antônio e Ordem Terceira, no Recife; com o Mosteiro de São Bento, no Rio; com o Convento de São Francisco, na Bahia; com o Mosteiro de São Bento, em Olinda; com a Igreja de São Francisco de Assis, em Ouro Preto; com o Forte do Príncipe da Beira, na atual Rondônia; e com o Santuário do Bom Jesus, em Congonhas.Subitamente, a indignação explodiu: historiadores de todo o mundo acusaram a organização do concurso de ocultar a terrível verdade. Para os indignados, alguns dos monumentos estão marcados pela vergonha da escravatura. É o caso da Fortaleza de São Jorge da Mina, em África, entreposto preferencial do tráfico. Os historiadores querem respeito pela história e exigem referência ao passado vergonhoso de Portugal. Que dizer? Duas coisas. A primeira, óbvia, é que a intenção dos historiadores não é simplesmente científica. Ela insere-se na vetusta tradição contemporânea de pedir desculpas pelos crimes dos antepassados, como se a culpa fosse uma espécie de vírus que passa de geração em geração. Será? Em caso afirmativo, não há nenhum motivo para pararmos nos portugueses. Pior: não há nenhum motivo para pararmos na Europa. Se a Europa colonizou África, outros povos colonizaram a Europa anteriormente. A história da civilização é, como diria Churchill, a história das suas guerras: da forma sucessiva como sucessivas civilizações foram conquistando e explorando as outras. Falar dos crimes do passado é falar de todos os crimes. E quem, honestamente, fica inocente nesse revisionismo total? Se a ideia dos historiadores é expiar as culpas passadas, melhor seria que denunciassem os crimes presentes: em África, na Ásia, mesmo na América Latina. Como conta E. Benjamin Skinner, em obra obrigatória sobre a matéria ("A Crime So Monstrous"), existem hoje mais escravos do que em qualquer outro período da história humana. Skinner não fala do simples tráfico de mulheres, a única forma de "escravatura" que parece incomodar as consciências progressistas.Skinner fala da servidão que existe em África, onde homens, mulheres e crianças são capturados em cenários de guerra e obrigados a trabalhar em campos ou pedreiras. Fala dos 10 milhões de escravos na Índia, obrigados a trabalho duro para pagar "dívidas transgeracionais". Pedir desculpas pelos crimes dos antepassados é um exercício inútil e, além disso, perfeitamente analfabeto. Mas se os historiadores que protestam cometem o erro anacrônico de julgar o passado com as categorias do presente, a verdade é que também não concordo com os organizadores do concurso que defendem as "maravilhas" com critérios exclusivamente estéticos. A pergunta é inevitável: será que a estética é independente de qualquer consideração ética? Ou, dito ainda de outra forma, será possível apreciar determinadas obras artísticas sem perder tempo com a dimensão imoral que paira sobre elas? Pessoalmente, sempre tive dúvidas. Acredito que Leni Riefenstahl seja um caso de talento no documentarismo germânico do século 20. Filmes como "O Triunfo da Vontade" ou "Olympia", no seu rigor iconográfico e na exaltação da força e da ordem, podem ser esteticamente impressionantes. Mas será possível apreciar Riefenstahl pelas qualidades puramente estéticas dos seus filmes? Será possível iludir, ou esquecer, que a "exaltação da força e da ordem" servia uma causa particular? Uma causa criminosa particular? Não creio. Fechar a discussão estética nas qualidades puramente formais de uma obra implicaria posições moralmente insustentáveis. Implicaria que, no limite, fosse possível elogiar a belíssima arquitetura das câmaras de gás de Auschwitz sem atender aos milhões de seres humanos que foram assassinados debaixo de tanta "beleza". Na polêmica das Sete Maravilhas de Origem Portuguesa no Mundo, ambos os lados chafurdam no erro e na hipocrisia. Nenhum país deve pedir desculpas pela sua história. Mas nenhum país deve reduzir a sua história a uma simpática galeria de adornos. Os fantasmas não nos perdoariam. jpcoutinho@folha.com.br
quinta-feira, 28 de maio de 2009
Razão X Fundamentalismo
A postura belicista da Coreia do Norte pode e deve ser usada como um exemplo claro do perigo do poder absoluto. Uma vez ancorado no poder, um governante totalitário invariavelmente costuma dispor de todos os meios que possui para manter e garantir sua posição, tratando assuntos de Estado e de política como se fossem questões pessoais e considerando, com o apoio de seus subordinados diretos, que sua palavra seja algo mais do que a opinião de um simples mortal, passível de erro como qualquer outro. Pior ainda quando a ideologia do governante absoluto e de sua "Corte", como acontece no caso da Coreia, pouco distingue humanos de abelhas, ou formigas, e não hesitaria nem por um instante em eliminar milhões se isso atender aos seus interesses, travestidos das mais "justas" e utópicas ideologias (vide os casos da URSS stalinista ou da Alemanha nazista, assim como diversos outros exemplos ao longo da História). É nesse ponto que se destaca a maior vantagem do sistema democrático, quando praticado com propriedade e coerência: as instituições e regras universais e preconcebidas visam evitar os abusos, regulamentando a postura dos próprios dirigentes e impedindo assim que os desmandos se transformem em rotina ou até se perpetuem. Se você não entendeu, considere o seguinte exemplo: O que aconteceria se a besta fundamentalista do Bush, com todo o poderio do arsenal dos EUA que, até bem pouco tempo, ele controlava, tivesse poder absoluto? Levando esse exemplo em conta, considere agora a hipótese de uma Coreia do Norte ou um Irã armados de bombas atômicas. Ou até mesmo a hipótese da completa desestabilização do Paquistão, país com armas nucleares. O que você acha que provocaria? Ainda que imperfeito e muitas vezes injusto, o ocidente iluminista não saiu diretamente da Idade Média para a era pós-industrial, como querem fazer alguns países que parecem ainda habitar a Idade das Trevas. Entre Torquemada e Voltaire percorremos um longo caminho. Homens que censuram e matam opositores e que apedrejam mulheres devem ser controlados pela razão, pela lei e por seus instrumentos. Esse é o jogo que merece ser jogado.
quarta-feira, 27 de maio de 2009
Superando velhos conceitos
A provavelmente inevitável fusão da Sadia com a Perdigão, que resultará em uma das maiores empresas de alimentos processados do mundo, a BRF, assim como a já consolidada fusão das principais cervejarias nacionais, que resultou na criação da AMBEV que, através de seu braço internacional, a IMBEV, também encampou algumas das mais famosas e conhecidas cervejas do mundo, são o reflexo do país que o Brasil quer ser nos próximos anos, décadas e séculos. Afinal, ainda que alguns critiquem tais fusões, levantando bandeiras contra supostos “monopólios”, o país não pode abrir mão de ser competitivo e preparado para os desafios da economia globalizada. A alternativa seria o desemprego e a dependência externa de um país que, sem competitividade, teria que importar até cerveja e hambúrgueres. Além disso, a consolidação das citadas fusões, além de garantir milhares (talvez milhões) de empregos para o país, também capacita as empresas envolvidas para concorrer de igual para igual com algumas das maiores indústrias do mundo não somente no mercado interno, mas também no mercado externo, melhorando nossa balança comercial e gerando receita para o país poder investir em setores fundamentais, como segurança, educação e saúde. Faça a sua opção e torça pelo país que você quer que o Brasil seja.
quinta-feira, 21 de maio de 2009
Recortes
Reuters - Washington (Reuters) - O presidente dos EUA, Barack Obama, rejeitou pedidos, inclusive de alguns colegas democratas, para a criação de uma comissão para investigar as políticas antiterror do governo George W. Bush, dizendo que "não se ganharia nada com isso".
Yahoo! - Brasília (Agência Estado) - O presidente da República em exercício, José Alencar, afirmou hoje que as denúncias de supostas irregularidades na Petrobras não são assunto para uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). "Não é assunto para CPI e sim para auditores da Receita Federal, da própria Petrobras e até mesmo de auditores independentes."
Yahoo! - Brasília (Agência Estado) - O presidente da República em exercício, José Alencar, afirmou hoje que as denúncias de supostas irregularidades na Petrobras não são assunto para uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI). "Não é assunto para CPI e sim para auditores da Receita Federal, da própria Petrobras e até mesmo de auditores independentes."
sábado, 9 de maio de 2009
A Condição Humana - por Drauzio Varella
(artigo publicado na Folha de São Paulo em 9 de Maio de 2009)
COMEÇAM A ser identificados os genes que codificam as características exclusivas da espécie humana. Os chimpanzés e nós descendemos de um mesmo ancestral que viveu até 6 milhões de anos atrás, época em que divergirmos deles, geneticamente. Somos tão próximos, que seríamos considerados seres da mesma espécie, caso adotássemos para os primatas os mesmos critérios usados para classificar os pássaros, por exemplo.O fato de compartilharmos cerca de 99% dos genes não é de surpreender, dadas a existência do ancestral comum e as semelhanças de aparência física, constituição bioquímica e até de relacionamento social. O que intriga é como 1% de diferença basta para explicar porque eles dormem em árvores, enquanto nós construímos cidades.Assim que o genoma do chimpanzé foi sequenciado, vários grupos se dedicaram a comparar os 3 bilhões de pares de bases (representadas pelas letras do alfabeto A, G, C e T) contidas no nosso DNA e no deles.A tarefa tem sido levada adiante por meio de programas de computador que "escaneiam" ambos os genomas à procura dos trechos em que as bases A, G, C e T estejam ordenadas de forma diversa.A conclusão é que as diferenças se acham confinadas em trechos de DNA formados por apenas 15 milhões de bases.Nesses estudos começam a emergir alguns genes, reunidos em uma revisão escrita por Katherine Pollard, da Universidade da Califórnia, na revista "Scientific American".O primeiro deles foi HAR1, gene ativo em alguns neurônios cerebrais.Esse gene é encontrado em todos os vertebrados, mas em galinhas e chimpanzés (espécies que divergiram há 300 milhões de anos) as diferenças são mínimas: cerca de 2%. Já, entre nós e os chimpanzés (espécies que divergiram há 6 milhões de anos) elas ultrapassam 10%.HAR1 é um gene ativo num tipo de neurônio essencial para o desenvolvimento do córtex cerebral, a camada mais externa do cérebro, cheia de reentrâncias e saliências, nas quais se acham entranhadas as atividades cognitivas que nos permitem compor sinfonias.Quando HAR1 sofre mutações podem surgir doenças congênitas eventualmente fatais, como a lisencefalia, enfermidade na qual a parte externa do cérebro fica lisa, sem as reentrâncias e saliências características do córtex humano.Outro gene que mostrou diferenças significativas com o similar em chimpanzés foi FOXP2, envolvido numa das mais importantes características humanas: o domínio da linguagem. Quando ocorrem mutações em FOXP2 as crianças perdem a capacidade de executar determinados movimentos faciais necessários para a articulação da palavra.Mas, o que distingue a fala humana das vocalizações empregadas na comunicação entre outros animais, não são simplesmente as características do aparelho fonador, mas o tamanho do cérebro. Nos últimos 6 milhões de anos, o volume de nosso cérebro mais do que triplicou.Um dos genes envolvidos nesse processo é ASPM, que, quando defeituoso, leva à condição congênita conhecida como microcefalia, na qual o cérebro chega a ficar reduzido a 70% de seu volume.Nem todas as características unicamente humanas se acham restritas ao cérebro, no entanto.A conquista do fogo há 1 milhão de anos e a da agricultura há 10 mil anos criaram oportunidades de acesso farto aos carboidratos. As calorias disponíveis nesses alimentos só puderam ser aproveitadas porque no genoma humano surgiram múltiplas cópias do gene AMY1, responsável pela produção de amilase na saliva, enzima essencial para a digestão dos açúcares.Outro exemplo é o gene LCT, responsável pela produção da lactase, enzima encarregada da digestão da lactose, o açúcar do leite que os mamíferos digerem bem apenas na infância. Mutações no genoma humano, ocorridas há 9 mil anos, produziram versões de LCT que tornaram possível a digestão de leite também na vida adulta, ampliando as possibilidades de sobrevivência em tempos de penúria.Descobrir a estrutura e as funções desses e de outros genes com mutações exclusivas da espécie humana, ocorridas ao acaso e submetidas ao crivo da seleção natural através da competição pela sobrevivência, permitirá conhecer a organização das moléculas que deram origem à condição humana.Não é mais instigante do que aceitar a ideia de que o homem seria fruto de um sopro divino e a mulher criada a partir de sua costela?
COMEÇAM A ser identificados os genes que codificam as características exclusivas da espécie humana. Os chimpanzés e nós descendemos de um mesmo ancestral que viveu até 6 milhões de anos atrás, época em que divergirmos deles, geneticamente. Somos tão próximos, que seríamos considerados seres da mesma espécie, caso adotássemos para os primatas os mesmos critérios usados para classificar os pássaros, por exemplo.O fato de compartilharmos cerca de 99% dos genes não é de surpreender, dadas a existência do ancestral comum e as semelhanças de aparência física, constituição bioquímica e até de relacionamento social. O que intriga é como 1% de diferença basta para explicar porque eles dormem em árvores, enquanto nós construímos cidades.Assim que o genoma do chimpanzé foi sequenciado, vários grupos se dedicaram a comparar os 3 bilhões de pares de bases (representadas pelas letras do alfabeto A, G, C e T) contidas no nosso DNA e no deles.A tarefa tem sido levada adiante por meio de programas de computador que "escaneiam" ambos os genomas à procura dos trechos em que as bases A, G, C e T estejam ordenadas de forma diversa.A conclusão é que as diferenças se acham confinadas em trechos de DNA formados por apenas 15 milhões de bases.Nesses estudos começam a emergir alguns genes, reunidos em uma revisão escrita por Katherine Pollard, da Universidade da Califórnia, na revista "Scientific American".O primeiro deles foi HAR1, gene ativo em alguns neurônios cerebrais.Esse gene é encontrado em todos os vertebrados, mas em galinhas e chimpanzés (espécies que divergiram há 300 milhões de anos) as diferenças são mínimas: cerca de 2%. Já, entre nós e os chimpanzés (espécies que divergiram há 6 milhões de anos) elas ultrapassam 10%.HAR1 é um gene ativo num tipo de neurônio essencial para o desenvolvimento do córtex cerebral, a camada mais externa do cérebro, cheia de reentrâncias e saliências, nas quais se acham entranhadas as atividades cognitivas que nos permitem compor sinfonias.Quando HAR1 sofre mutações podem surgir doenças congênitas eventualmente fatais, como a lisencefalia, enfermidade na qual a parte externa do cérebro fica lisa, sem as reentrâncias e saliências características do córtex humano.Outro gene que mostrou diferenças significativas com o similar em chimpanzés foi FOXP2, envolvido numa das mais importantes características humanas: o domínio da linguagem. Quando ocorrem mutações em FOXP2 as crianças perdem a capacidade de executar determinados movimentos faciais necessários para a articulação da palavra.Mas, o que distingue a fala humana das vocalizações empregadas na comunicação entre outros animais, não são simplesmente as características do aparelho fonador, mas o tamanho do cérebro. Nos últimos 6 milhões de anos, o volume de nosso cérebro mais do que triplicou.Um dos genes envolvidos nesse processo é ASPM, que, quando defeituoso, leva à condição congênita conhecida como microcefalia, na qual o cérebro chega a ficar reduzido a 70% de seu volume.Nem todas as características unicamente humanas se acham restritas ao cérebro, no entanto.A conquista do fogo há 1 milhão de anos e a da agricultura há 10 mil anos criaram oportunidades de acesso farto aos carboidratos. As calorias disponíveis nesses alimentos só puderam ser aproveitadas porque no genoma humano surgiram múltiplas cópias do gene AMY1, responsável pela produção de amilase na saliva, enzima essencial para a digestão dos açúcares.Outro exemplo é o gene LCT, responsável pela produção da lactase, enzima encarregada da digestão da lactose, o açúcar do leite que os mamíferos digerem bem apenas na infância. Mutações no genoma humano, ocorridas há 9 mil anos, produziram versões de LCT que tornaram possível a digestão de leite também na vida adulta, ampliando as possibilidades de sobrevivência em tempos de penúria.Descobrir a estrutura e as funções desses e de outros genes com mutações exclusivas da espécie humana, ocorridas ao acaso e submetidas ao crivo da seleção natural através da competição pela sobrevivência, permitirá conhecer a organização das moléculas que deram origem à condição humana.Não é mais instigante do que aceitar a ideia de que o homem seria fruto de um sopro divino e a mulher criada a partir de sua costela?
quinta-feira, 7 de maio de 2009
Bons (?) e velhos tempos
Nunca tanta gente viveu tão bem no mundo. É fato, por mais espantoso que possa parecer. Apesar de todas as tragédias que ainda assombram parte da humanidade e da velocidade com que essas tragédias chegam até o nosso conhecimento através dos meios de comunicação, a verdade é que nunca, em nenhum momento da história, tanta gente viveu tão bem ou, no mínimo, com tanta segurança alimentar como hoje em dia.
É só voltar poucos anos no tempo e pensar como era a vida em países como Itália, Inglaterra, França ou Alemanha há cem anos atrás, para a maioria da população, e depois comparar com a realidade desses países hoje, mesmo para os mais pobres entre seus habitantes. No Brasil então, nem se fala. Há pouco mais de cem anos a Avenida Paulista não era nem asfaltada, hoje é um dos mais caros “metro quadrado” do país.
Ainda que falte muito para atingirmos um nível humanamente aceitável para a maioria dos brasileiros, é só compararmos os indicadores sociais do país nos anos de 1910, 20, 30, 40... e assim por diante, até 2000, para vermos a enorme evolução em relação há alfabetização, expectativa de vida, saneamento básico (ainda um dos maiores problemas) e mortalidade infantil, entre outros itens.
Ainda assim, há julgar pelo que se vê na televisão, principalmente em alguns programas “jornalísticos”, parece que vivemos no pior dos mundos.
A cobertura obsessiva e sensacionalista de eventos negativos por alguns setores da mídia, como no caso da gripe “suína”, parecem refletir uma certa ansiedade pelo perigo do imprevisto em uma civilização cada vez mais pautada pela estabilidade.
É só voltar poucos anos no tempo e pensar como era a vida em países como Itália, Inglaterra, França ou Alemanha há cem anos atrás, para a maioria da população, e depois comparar com a realidade desses países hoje, mesmo para os mais pobres entre seus habitantes. No Brasil então, nem se fala. Há pouco mais de cem anos a Avenida Paulista não era nem asfaltada, hoje é um dos mais caros “metro quadrado” do país.
Ainda que falte muito para atingirmos um nível humanamente aceitável para a maioria dos brasileiros, é só compararmos os indicadores sociais do país nos anos de 1910, 20, 30, 40... e assim por diante, até 2000, para vermos a enorme evolução em relação há alfabetização, expectativa de vida, saneamento básico (ainda um dos maiores problemas) e mortalidade infantil, entre outros itens.
Ainda assim, há julgar pelo que se vê na televisão, principalmente em alguns programas “jornalísticos”, parece que vivemos no pior dos mundos.
A cobertura obsessiva e sensacionalista de eventos negativos por alguns setores da mídia, como no caso da gripe “suína”, parecem refletir uma certa ansiedade pelo perigo do imprevisto em uma civilização cada vez mais pautada pela estabilidade.
terça-feira, 21 de abril de 2009
O Presidente Paraguaio
O presidente paraguaio, Fernando Lugo, é um canalha!
Ainda que avesso à "categoricismos", é inevitável resistir à tentação dessa afirmação mais do que óbvia.
Afinal, Lugo era um membro da Igreja Católica paraguaia, bispo da diocese de San Pedro e conhecido como "bispo dos pobres". Quando resolveu entrar para a política, Lugo entrou com um pedido de dispensa clerical e, após ser candidato à presidente, conseguiu a tal dispensa, sendo eleito para governar o país fronteiriço com o Brasil. Ainda assim, Lugo continua usando o acessório branco na gola das camisas (o qual me foge o nome), como se fosse algum tipo de sacerdote, provavelmente para gerar mais confusão ainda na cabeça de seus eleitores mais humildes ou menos esclarecidos (padre comunista ou comunista padre?).
Até aí, (quase) tudo bem.
Mas o pior vem depois.
Após a confirmação de que um filho seu, ilegítimo, ou seja, não reconhecido, vivia em estado de pobreza ao lado da mãe, que teve um caso com Lugo quando este ainda era bispo e, após o exame de DNA provar cientificamente o parentesco com Lugo, outros casos estão surgindo de mães extremamente pobres que se dizem ex-amantes do tal presidente e, em todos os casos, estas mães aceitaram a realização de exames de DNA em seus filhos para confirmar a paternidade de Lugo em relação à eles, nascidos logo após os citados "casos". A maioria delas é composta por mulheres humildes que foram pedir algum tipo de auxílio à Lugo quando ele ainda era o "bispo dos pobres" de San Pedro.
Não se trata aqui de discutir a questão do celibato clerical, com o qual pouco importa se eu concordo ou não (e não concordo), uma vez que não sou clérigo e nem vou à Igreja, ainda que defenda a liberdade religiosa (assim como qualquer outra). Não se trata também de um discurso moralista, uma vez que concordo com Freud sobre a relação entre querer poder e querer aumentar sua oferta sexual (Zeus é meu deus favorito).
Se trata, na verdade, de questionar o quanto de "amor ao próximo" ou de "responsabilidade social" tem um homem que, ao se aproveitar de mulheres pobres que precisavam de seu auxílio, ignora e deixa na pobreza seus próprios filhos, os quais só reconhece por ordem judicial. Afinal, por quem pode se responsabilizar quem não se responsabiliza nem pelos seus?
De coerente nesse caso, só uma coisa: o clérigo Lugo não usava camisinha.
Ainda que avesso à "categoricismos", é inevitável resistir à tentação dessa afirmação mais do que óbvia.
Afinal, Lugo era um membro da Igreja Católica paraguaia, bispo da diocese de San Pedro e conhecido como "bispo dos pobres". Quando resolveu entrar para a política, Lugo entrou com um pedido de dispensa clerical e, após ser candidato à presidente, conseguiu a tal dispensa, sendo eleito para governar o país fronteiriço com o Brasil. Ainda assim, Lugo continua usando o acessório branco na gola das camisas (o qual me foge o nome), como se fosse algum tipo de sacerdote, provavelmente para gerar mais confusão ainda na cabeça de seus eleitores mais humildes ou menos esclarecidos (padre comunista ou comunista padre?).
Até aí, (quase) tudo bem.
Mas o pior vem depois.
Após a confirmação de que um filho seu, ilegítimo, ou seja, não reconhecido, vivia em estado de pobreza ao lado da mãe, que teve um caso com Lugo quando este ainda era bispo e, após o exame de DNA provar cientificamente o parentesco com Lugo, outros casos estão surgindo de mães extremamente pobres que se dizem ex-amantes do tal presidente e, em todos os casos, estas mães aceitaram a realização de exames de DNA em seus filhos para confirmar a paternidade de Lugo em relação à eles, nascidos logo após os citados "casos". A maioria delas é composta por mulheres humildes que foram pedir algum tipo de auxílio à Lugo quando ele ainda era o "bispo dos pobres" de San Pedro.
Não se trata aqui de discutir a questão do celibato clerical, com o qual pouco importa se eu concordo ou não (e não concordo), uma vez que não sou clérigo e nem vou à Igreja, ainda que defenda a liberdade religiosa (assim como qualquer outra). Não se trata também de um discurso moralista, uma vez que concordo com Freud sobre a relação entre querer poder e querer aumentar sua oferta sexual (Zeus é meu deus favorito).
Se trata, na verdade, de questionar o quanto de "amor ao próximo" ou de "responsabilidade social" tem um homem que, ao se aproveitar de mulheres pobres que precisavam de seu auxílio, ignora e deixa na pobreza seus próprios filhos, os quais só reconhece por ordem judicial. Afinal, por quem pode se responsabilizar quem não se responsabiliza nem pelos seus?
De coerente nesse caso, só uma coisa: o clérigo Lugo não usava camisinha.
sexta-feira, 10 de abril de 2009
Chávez com nhoque (Folha de São Paulo - 09/04/2009)
por: CONTARDO CALLIGARIS
NUM DOMINGO ITALIANO do fim dos anos 50, minha família estava reunida para o almoço. Minha avó materna servia nhoque feito em casa. Detalhe: nos anos 30 e sobretudo durante a guerra, meu avô materno não tinha sido fascista militante, mas tampouco ele tinha resistido. Ele fora passivo e um tanto gregário, enquanto meu pai, liberal e social-democrata, tinha encarado o inimigo.Essa diferença, em geral, não produzia faíscas, mas, naquela ocasião, meu avô, descontente com o governo da época, esboçou uma pequena lista dos "benefícios" do fascismo: vantagens trabalhistas, sindicatos corporativos, grandes obras, saneamento da planície do sul do Lazio (a região de Roma). Pena, ele acrescentou, que isso tivesse nos levado à guerra e à aliança com a Alemanha nazista. Houve um silêncio consternado dos meus pais, que forçou meu avô a continuar a enumeração dos custos de tamanhos "benefícios". Mastigando nhoque, ele resmungou alguma coisa sobre a aventura africana, a censura, a prisão e o confinamento dos opositores, as leis raciais etc.. Meu pai perguntou: "E, para sanear pântanos e instituir sindicatos, era preciso tudo isso?". A pergunta pairou no ar, sem resposta. O nhoque, ao se desfazer em nossa boca, ficou pastoso e chocho. Desde então, em meu vocabulário íntimo, a expressão "discurso de nhoque" designa toda conversa que salienta os benefícios de um regime e silencia ou minimiza seu lado sinistro, com o pressuposto de que o lado sinistro seja um custo "necessário". Nos anos 60, pratiquei bastante o discurso de nhoque. Militante de esquerda, assolado pelas notícias sobre a falta de liberdade do outro lado da "Cortina de Ferro", eu geralmente respondia: "Liberdade de quê? De morrer de fome?" -como se a liberdade fosse o preço que se paga normalmente para poder comer. À força de viajar pelos países do bloco socialista, percebi que, quase sempre, o discurso de nhoque é a fala do turista, que vai voltar sem problemas para seu país. Quem paga seu pão com a renúncia a poder viajar, expressar-se, reunir-se etc., em geral, perde a fome. Gostei cada vez menos do discurso de nhoque. Chego a um almoço de alguns dias atrás. Por fatalidade, um amigo trouxera uma iguaria: nhoque recheado. Nhoque vai nhoque vem, dois comensais começaram a falar de Hugo Chávez e dos "benefícios" de seu regime. Como era de esperar (considerando o que estava na mesa), foi em tom de nhoque: claro que há o que dizer sobre a truculência de Chávez, mas olhem para os benefícios! Mais uma vez, como se fosse "normal" que os benefícios se pagassem pela truculência. Ora, vivemos dias interessantes: pelo mundo afora, discute-se sobre a sociedade que queremos. E talvez, à força de errar, a gente tenha aprendido a pensar além da alternativa simplista entre, de um lado, a liberdade absoluta dos agentes econômicos e, do outro lado, o "Estado forte". Hoje, em tese, sabemos que, para evitar a maracutaia financeira, não é necessário que os agricultores sejam impedidos de vender livremente suas batatas no mercado da vila (estou exagerando? Pergunte aos pequenos produtores cubanos). Reciprocamente, para evitar a opressão do Estado e dos "partidos únicos", não é necessário recusar assistências e garantias coletivas (estou exagerando? Pergunte aos milhões de norte-americanos sem seguro médico). Mas continua grande a tentação do discurso de nhoque, pelo qual nada do que queremos pode acontecer sem a contrapartida de uma renúncia penosa. Daqui a pouco, um economista da Goldman Sachs nos explicará que, para sair da crise, precisamos aceitar um partido único de tipo chinês. De onde vem a força do discurso de nhoque? Freud observou que, quando se trata de reprimir nosso próprio querer, sempre tendemos a reprimir muito mais do que é preciso.Por exemplo, estou a fim de transar com todo o mundo, mas também quero ser um marido ou uma esposa fiel? Pois é, desisto do sexo de vez, entrando num convento. Ou, então, estou cansado da insegurança nas nossas ruas; para facilitar e garantir o policiamento, topo que todos sejamos presos e vivamos numa prisão. O que fazer contra o discurso de nhoque? A receita é dos anos 60. Não acredite nas alternativas excludentes (pão OU liberdade) e peça alegremente o "impossível": pão COM liberdade. Não se preocupe: na maioria dos casos, entre os dois, não há contradição alguma.
NUM DOMINGO ITALIANO do fim dos anos 50, minha família estava reunida para o almoço. Minha avó materna servia nhoque feito em casa. Detalhe: nos anos 30 e sobretudo durante a guerra, meu avô materno não tinha sido fascista militante, mas tampouco ele tinha resistido. Ele fora passivo e um tanto gregário, enquanto meu pai, liberal e social-democrata, tinha encarado o inimigo.Essa diferença, em geral, não produzia faíscas, mas, naquela ocasião, meu avô, descontente com o governo da época, esboçou uma pequena lista dos "benefícios" do fascismo: vantagens trabalhistas, sindicatos corporativos, grandes obras, saneamento da planície do sul do Lazio (a região de Roma). Pena, ele acrescentou, que isso tivesse nos levado à guerra e à aliança com a Alemanha nazista. Houve um silêncio consternado dos meus pais, que forçou meu avô a continuar a enumeração dos custos de tamanhos "benefícios". Mastigando nhoque, ele resmungou alguma coisa sobre a aventura africana, a censura, a prisão e o confinamento dos opositores, as leis raciais etc.. Meu pai perguntou: "E, para sanear pântanos e instituir sindicatos, era preciso tudo isso?". A pergunta pairou no ar, sem resposta. O nhoque, ao se desfazer em nossa boca, ficou pastoso e chocho. Desde então, em meu vocabulário íntimo, a expressão "discurso de nhoque" designa toda conversa que salienta os benefícios de um regime e silencia ou minimiza seu lado sinistro, com o pressuposto de que o lado sinistro seja um custo "necessário". Nos anos 60, pratiquei bastante o discurso de nhoque. Militante de esquerda, assolado pelas notícias sobre a falta de liberdade do outro lado da "Cortina de Ferro", eu geralmente respondia: "Liberdade de quê? De morrer de fome?" -como se a liberdade fosse o preço que se paga normalmente para poder comer. À força de viajar pelos países do bloco socialista, percebi que, quase sempre, o discurso de nhoque é a fala do turista, que vai voltar sem problemas para seu país. Quem paga seu pão com a renúncia a poder viajar, expressar-se, reunir-se etc., em geral, perde a fome. Gostei cada vez menos do discurso de nhoque. Chego a um almoço de alguns dias atrás. Por fatalidade, um amigo trouxera uma iguaria: nhoque recheado. Nhoque vai nhoque vem, dois comensais começaram a falar de Hugo Chávez e dos "benefícios" de seu regime. Como era de esperar (considerando o que estava na mesa), foi em tom de nhoque: claro que há o que dizer sobre a truculência de Chávez, mas olhem para os benefícios! Mais uma vez, como se fosse "normal" que os benefícios se pagassem pela truculência. Ora, vivemos dias interessantes: pelo mundo afora, discute-se sobre a sociedade que queremos. E talvez, à força de errar, a gente tenha aprendido a pensar além da alternativa simplista entre, de um lado, a liberdade absoluta dos agentes econômicos e, do outro lado, o "Estado forte". Hoje, em tese, sabemos que, para evitar a maracutaia financeira, não é necessário que os agricultores sejam impedidos de vender livremente suas batatas no mercado da vila (estou exagerando? Pergunte aos pequenos produtores cubanos). Reciprocamente, para evitar a opressão do Estado e dos "partidos únicos", não é necessário recusar assistências e garantias coletivas (estou exagerando? Pergunte aos milhões de norte-americanos sem seguro médico). Mas continua grande a tentação do discurso de nhoque, pelo qual nada do que queremos pode acontecer sem a contrapartida de uma renúncia penosa. Daqui a pouco, um economista da Goldman Sachs nos explicará que, para sair da crise, precisamos aceitar um partido único de tipo chinês. De onde vem a força do discurso de nhoque? Freud observou que, quando se trata de reprimir nosso próprio querer, sempre tendemos a reprimir muito mais do que é preciso.Por exemplo, estou a fim de transar com todo o mundo, mas também quero ser um marido ou uma esposa fiel? Pois é, desisto do sexo de vez, entrando num convento. Ou, então, estou cansado da insegurança nas nossas ruas; para facilitar e garantir o policiamento, topo que todos sejamos presos e vivamos numa prisão. O que fazer contra o discurso de nhoque? A receita é dos anos 60. Não acredite nas alternativas excludentes (pão OU liberdade) e peça alegremente o "impossível": pão COM liberdade. Não se preocupe: na maioria dos casos, entre os dois, não há contradição alguma.
terça-feira, 31 de março de 2009
Dilema Moral
Pra pensar na cama:
Imagine você e um outro ser humano - que você acabou de conhecer - vagando perdidos em pleno deserto.
Eis que aparece uma entidade mágica, uma espécie de "gênio", ou santo, e oferece um copo de água fazendo a seguinte afirmação: "Se cada um beber metade, os dois morrem. Se um de vocês bebê-lo todo, sobrevive". Em seguida o tal do "sobrenatural" desaparece. Ponto.
Qual é a atitude moralmente correta a tomar?
PS: Moral é uma palavra ampla, não serve apenas para identificar a "nossa" moral, aquela que as avós nos ensinaram. Nesse caso, o termo correto seria algo como "moral vigente", o que não é o caso, já que a pergunta não se restringe a nenhum tipo específico de moral. Afinal, a questão é: O que você faria?
Imagine você e um outro ser humano - que você acabou de conhecer - vagando perdidos em pleno deserto.
Eis que aparece uma entidade mágica, uma espécie de "gênio", ou santo, e oferece um copo de água fazendo a seguinte afirmação: "Se cada um beber metade, os dois morrem. Se um de vocês bebê-lo todo, sobrevive". Em seguida o tal do "sobrenatural" desaparece. Ponto.
Qual é a atitude moralmente correta a tomar?
PS: Moral é uma palavra ampla, não serve apenas para identificar a "nossa" moral, aquela que as avós nos ensinaram. Nesse caso, o termo correto seria algo como "moral vigente", o que não é o caso, já que a pergunta não se restringe a nenhum tipo específico de moral. Afinal, a questão é: O que você faria?
Felicidade
Ao contrário da maioria dos outros animais, os humanos nunca vivem o presente. Cada um de seus momentos está sempre preenchido por uma enorme dose de passado e de futuro.
domingo, 15 de março de 2009
Pensando o Impensável (por Clóvis Rossi)
artigo publicado na Folha de São Paulo em 14/03/2009 por Clóvis Rossi
Teste para o leitor: se você ler que um importante líder político está dizendo que um determinado país deve "manter sua credibilidade, honrar seus compromissos e garantir os ativos de nosso país", vai imediatamente pensar que alguém está falando em risco de calote no Brasil, na Argentina, na Venezuela ou em algum outro exótico país tropical, certo? Era certo até uns anos atrás. Agora, a frase, literalmente reproduzida, é do primeiro-ministro chinês Wen Jiabao, e o alvo são, sim, os Estados Unidos da América. "Nós emprestamos uma enorme quantia de dinheiro aos Estados Unidos e, naturalmente, estamos preocupados com a segurança de nossos ativos", disse Wen. Calcula-se que dois terços dos praticamente US$ 2 trilhões de reservas da China estão em ativos norte-americanos, especialmente títulos do Tesouro. É natural, portanto, que estejam preocupados. Mas não pense que é apenas aquela velha história de que quem não dorme à noite é o credor, nunca o devedor. Desde que a crise global se agravou, a partir do último trimestre do ano passado, a palavra calote, associada a Estados Unidos, começou a aparecer aqui e ali, a princípio timidamente. Quando a possibilidade de um calote foi mencionada no endereço do Council on Foreign Relations, talvez o principal centro de pesquisas de política internacional do planeta, aí a coisa ficou realmente assustadora. Não sei se alguém já parou para estudar as consequências desse cenário de pesadelo. O fato é que Wen Jiabao acrescentou que a primeira prioridade da China é defender os seus próprios interesses, ainda que com o outro olho na estabilidade financeira internacional, coisas que são "interrelacionadas". É um aceno no sentido de que a China pode parar de financiar os EUA? Se for, quem vai perder o sono somos todos.
Teste para o leitor: se você ler que um importante líder político está dizendo que um determinado país deve "manter sua credibilidade, honrar seus compromissos e garantir os ativos de nosso país", vai imediatamente pensar que alguém está falando em risco de calote no Brasil, na Argentina, na Venezuela ou em algum outro exótico país tropical, certo? Era certo até uns anos atrás. Agora, a frase, literalmente reproduzida, é do primeiro-ministro chinês Wen Jiabao, e o alvo são, sim, os Estados Unidos da América. "Nós emprestamos uma enorme quantia de dinheiro aos Estados Unidos e, naturalmente, estamos preocupados com a segurança de nossos ativos", disse Wen. Calcula-se que dois terços dos praticamente US$ 2 trilhões de reservas da China estão em ativos norte-americanos, especialmente títulos do Tesouro. É natural, portanto, que estejam preocupados. Mas não pense que é apenas aquela velha história de que quem não dorme à noite é o credor, nunca o devedor. Desde que a crise global se agravou, a partir do último trimestre do ano passado, a palavra calote, associada a Estados Unidos, começou a aparecer aqui e ali, a princípio timidamente. Quando a possibilidade de um calote foi mencionada no endereço do Council on Foreign Relations, talvez o principal centro de pesquisas de política internacional do planeta, aí a coisa ficou realmente assustadora. Não sei se alguém já parou para estudar as consequências desse cenário de pesadelo. O fato é que Wen Jiabao acrescentou que a primeira prioridade da China é defender os seus próprios interesses, ainda que com o outro olho na estabilidade financeira internacional, coisas que são "interrelacionadas". É um aceno no sentido de que a China pode parar de financiar os EUA? Se for, quem vai perder o sono somos todos.
domingo, 1 de março de 2009
Semana da Mulher
A trajetória específica da mulher desde o surgimento do homo sapiens é tão conturbada e controversa quanto a trajetória da humanidade como um todo e de suas partes em si, mas apresenta algumas peculiaridades que devem ser levadas em conta.
Foi na Revolução Agrícola, na transição do paleolítico para o neolítico, que o papel da mulher ganhou as configurações que, até bem pouco tempo atrás, se impunham de maneira indiscutível na organização da maioria das sociedades, da Groenlândia ao Ártico, tanto à leste quanto à oeste de Greenwich. Afinal, conservadores até a medula, os machos se mantiveram caçando, pescando e coletando, enquanto as mulheres, além de se dedicarem à manutenção da caverna (e, a partir da citada transição, da palafita) e à proteção dos filhotes, agora também plantavam, colhiam, pastoreavam e, nas horas vagas, de ócio criativo, desenvolveram a cerâmica, a religião e, segundo algumas fontes, principalmente baseadas no crescente fértil e nos árias, até o calendário. A relação entre o neolítico e as mulheres é óbvia. Uma das fases mais criativas da humanidade, a importância dos rios e da fertilidade do solo para essa etapa e para o consequente surgimento da civilização colocavam o mito da "deusa mãe" no centro da cultura, entre 20.000 a.C. e o século V d.C. (entre o neolítico e a queda da antiguidade).
Na medida em que a civilização surgiu, e o poder político se estruturou, a função da mulher foi se restringindo ao lar, principalmente entre os povos mais belicistas mas, ainda assim, a necessidade de filhotes saudáveis em sociedades como a espartana e a romana conferiam um certo "status" à mulher.
No início da Idade Média, com a ascensão do monoteísmo - cristão no ocidente e, no oriente, islâmico - ambos escorados na visão hebraica, ganha importância a compreensão da mulher como "influência pejorativa" ou "instrumento da tentação", nas palavras de importantes teólogos da época, como Santo Agostinho, em suas "Confissões", ou no próprio Alcorão maometano (vide o mito de Eva, a história de Dalila ou a interpretação da vida de mulheres históricas como Maria Madalena ou Cleópatra).
A partir de então, fogueiras, burcas, cintos de castidade e outros instrumentos de repressão se tornaram presentes no cotidiano de mulheres pelo mundo inteiro.
Já na Idade Moderna, a partir da ascensão dos valores burgueses, entre eles o individualismo e o materialismo, as mulheres foram se tornando mão-de-obra e, posteriormente, mercado consumidor cada vez mais útil.
Na colonização da América, mulheres brancas eram raras e, nesse "viés", também valorizadas, ainda que submetidas à um dos piores tipos de patriarcalismo de todos os tempos - o patriarcalismo rural desse "feudalismo tardio" que foi a formação da América Latina.
Enfim, na Idade Contemporânea, ao menos nos países "iluministas (*)", a campanha das "sufragetes" pelo voto feminino; a esmagadora mortandade de homens nos campos de batalha e as necessidades da indústria bélica entre os anos 10 e 40; o advento do consumo de massa; a invenção da pílula anticoncepcional; além da própria evolução cultural da humanidade, permitiram que as mulheres ocupassem todos os espaços da vida pública e privada, com possibilidade de escolhas individuais e participação nas decisões coletivas, ainda que enfrentando alguns desafios específicos muitas vezes diferentes dos desafios dos homens, entre eles o preconceito, as diferenças salariais, os diversos tipos de assédio e aquele que talvez seja o maior de todos: o de conciliar as suas "novas" funções com aquelas que sobrevivem desde o neolítico.
(*) A referência aos países iluministas tem dois motivos:
1 - Nas sociedades fundamentalistas, como os xiitas e os amish, a mulher é submetida à moral medieval.
2 - Entre as propostas socialistas do final do século XIX e do início do XX, circulava na Rússia a idéia da "esposa coletiva", que, partindo do pressuposto de que a mulher seria uma "propriedade", deveria ser então "socializada", executando, segundo um panfleto apócrifo russo do início do século XX: "suas funções e obrigações não em benefício de um único membro, mas da comuna como um todo".
Foi na Revolução Agrícola, na transição do paleolítico para o neolítico, que o papel da mulher ganhou as configurações que, até bem pouco tempo atrás, se impunham de maneira indiscutível na organização da maioria das sociedades, da Groenlândia ao Ártico, tanto à leste quanto à oeste de Greenwich. Afinal, conservadores até a medula, os machos se mantiveram caçando, pescando e coletando, enquanto as mulheres, além de se dedicarem à manutenção da caverna (e, a partir da citada transição, da palafita) e à proteção dos filhotes, agora também plantavam, colhiam, pastoreavam e, nas horas vagas, de ócio criativo, desenvolveram a cerâmica, a religião e, segundo algumas fontes, principalmente baseadas no crescente fértil e nos árias, até o calendário. A relação entre o neolítico e as mulheres é óbvia. Uma das fases mais criativas da humanidade, a importância dos rios e da fertilidade do solo para essa etapa e para o consequente surgimento da civilização colocavam o mito da "deusa mãe" no centro da cultura, entre 20.000 a.C. e o século V d.C. (entre o neolítico e a queda da antiguidade).
Na medida em que a civilização surgiu, e o poder político se estruturou, a função da mulher foi se restringindo ao lar, principalmente entre os povos mais belicistas mas, ainda assim, a necessidade de filhotes saudáveis em sociedades como a espartana e a romana conferiam um certo "status" à mulher.
No início da Idade Média, com a ascensão do monoteísmo - cristão no ocidente e, no oriente, islâmico - ambos escorados na visão hebraica, ganha importância a compreensão da mulher como "influência pejorativa" ou "instrumento da tentação", nas palavras de importantes teólogos da época, como Santo Agostinho, em suas "Confissões", ou no próprio Alcorão maometano (vide o mito de Eva, a história de Dalila ou a interpretação da vida de mulheres históricas como Maria Madalena ou Cleópatra).
A partir de então, fogueiras, burcas, cintos de castidade e outros instrumentos de repressão se tornaram presentes no cotidiano de mulheres pelo mundo inteiro.
Já na Idade Moderna, a partir da ascensão dos valores burgueses, entre eles o individualismo e o materialismo, as mulheres foram se tornando mão-de-obra e, posteriormente, mercado consumidor cada vez mais útil.
Na colonização da América, mulheres brancas eram raras e, nesse "viés", também valorizadas, ainda que submetidas à um dos piores tipos de patriarcalismo de todos os tempos - o patriarcalismo rural desse "feudalismo tardio" que foi a formação da América Latina.
Enfim, na Idade Contemporânea, ao menos nos países "iluministas (*)", a campanha das "sufragetes" pelo voto feminino; a esmagadora mortandade de homens nos campos de batalha e as necessidades da indústria bélica entre os anos 10 e 40; o advento do consumo de massa; a invenção da pílula anticoncepcional; além da própria evolução cultural da humanidade, permitiram que as mulheres ocupassem todos os espaços da vida pública e privada, com possibilidade de escolhas individuais e participação nas decisões coletivas, ainda que enfrentando alguns desafios específicos muitas vezes diferentes dos desafios dos homens, entre eles o preconceito, as diferenças salariais, os diversos tipos de assédio e aquele que talvez seja o maior de todos: o de conciliar as suas "novas" funções com aquelas que sobrevivem desde o neolítico.
(*) A referência aos países iluministas tem dois motivos:
1 - Nas sociedades fundamentalistas, como os xiitas e os amish, a mulher é submetida à moral medieval.
2 - Entre as propostas socialistas do final do século XIX e do início do XX, circulava na Rússia a idéia da "esposa coletiva", que, partindo do pressuposto de que a mulher seria uma "propriedade", deveria ser então "socializada", executando, segundo um panfleto apócrifo russo do início do século XX: "suas funções e obrigações não em benefício de um único membro, mas da comuna como um todo".
sábado, 14 de fevereiro de 2009
O outro
O incentivo explícito, por parte do governo Obama, para que os americanos comprem produtos nacionais, assim como, tanto nos EUA quanto na Europa, as campanhas para que os imigrantes sejam demitidos primeiro em função da crise, ignoram um dos princípios básicos do Estado Liberal: o mérito.
Afinal, cada um tem o direito de comprar o produto que bem entender, baseando-se única e exclusivamente na relação entre qualidade e preço, assim como os patrões devem (ou deveriam) optar, independente da "tribo" a que pertençam, por demitir os "menos produtivos", independente da cor da pele ou do local de nascimento.
Por outro lado, esse fenômeno - de rejeição ao outro, principalmente nos momentos críticos - longe de ser uma exceção, é a regra na História, em ordem decrescente de poder e prestígio étnico ou nacional. Vale destacar que, desde o surgimento do homo-sapiens, a rejeição e a hostilidade com o "estrangeiro" aumentam proporcionalmente à escassez de recursos materiais do território ocupado. E esse talvez seja o aspecto mais nefasto da crise, afinal, crises em si, segundo alguns dos maiores economistas do mundo, ocorrem de tempos em tempos no capitalismo, com menor ou maior intensidade.
Já a xenofobia e o racismo, fantasmas que pareciam ter sido drasticamente enfraquecidos, ainda que não derrotados, após a segunda metade do século XX, parecem agora estar se fortalecendo, alimentados pelo medo da recessão e pelo aparente exagero dos meios de comunicação sobre o tamanho do monstro.
De positivo para nós, brasileiros, fica o seguinte: Parece ser cada vez mais tentador ficar por aqui mesmo, usando os países centrais apenas como destino turístico, e não como meta para novo lar.
Tão óbvio quanto a esfericidade da Terra é a ininterruptibilidade da História, afinal, " tudo o que é sólido se desmancha no ar", ainda que, ao contrário do que pensava o autor da frase, a liberdade seja a principal ferramenta.
Afinal, cada um tem o direito de comprar o produto que bem entender, baseando-se única e exclusivamente na relação entre qualidade e preço, assim como os patrões devem (ou deveriam) optar, independente da "tribo" a que pertençam, por demitir os "menos produtivos", independente da cor da pele ou do local de nascimento.
Por outro lado, esse fenômeno - de rejeição ao outro, principalmente nos momentos críticos - longe de ser uma exceção, é a regra na História, em ordem decrescente de poder e prestígio étnico ou nacional. Vale destacar que, desde o surgimento do homo-sapiens, a rejeição e a hostilidade com o "estrangeiro" aumentam proporcionalmente à escassez de recursos materiais do território ocupado. E esse talvez seja o aspecto mais nefasto da crise, afinal, crises em si, segundo alguns dos maiores economistas do mundo, ocorrem de tempos em tempos no capitalismo, com menor ou maior intensidade.
Já a xenofobia e o racismo, fantasmas que pareciam ter sido drasticamente enfraquecidos, ainda que não derrotados, após a segunda metade do século XX, parecem agora estar se fortalecendo, alimentados pelo medo da recessão e pelo aparente exagero dos meios de comunicação sobre o tamanho do monstro.
De positivo para nós, brasileiros, fica o seguinte: Parece ser cada vez mais tentador ficar por aqui mesmo, usando os países centrais apenas como destino turístico, e não como meta para novo lar.
Tão óbvio quanto a esfericidade da Terra é a ininterruptibilidade da História, afinal, " tudo o que é sólido se desmancha no ar", ainda que, ao contrário do que pensava o autor da frase, a liberdade seja a principal ferramenta.
segunda-feira, 2 de fevereiro de 2009
Vidas Civis
Quanto vale uma vida civil? Seja ela palestina, americana, israelense ou iraquiana? O que distingue terrorismo de ação militar? O poder, a tecnologia ou a capacidade de marketing e o controle dos meios de comunicação?
O que separa um judeu massacrado de maneira desumana durante a segunda guerra e um palestino massacrado de maneira desumana na Faixa de Gaza?
O que separa (além de 5 séculos!) Hitler dos governos escravocratas da América, ou dos pioneiros do Oeste dos EUA?
Quanto vale a vida dos milhões de africanos portadores de HIV que correm o risco de ficar sem remédio graças ao interesse dos grandes laboratórios? E dos flagelados da seca nordestina? E a vida das mães e pais israelenses e palestinos que amargam uma sangrenta e diária guerra? E a vida dos iraquianos humilhados pelo sadismo de tropas privadas de mercenários e de guerreiros tribais xiitas e sunitas, quanto vale? E a vida dos desempregados da suposta crise financeira? E a vida dos cidadãos israelenses, libaneses, turcos, espanhóis, italianos, colombianos, argentinos e tantos outros, vítimas do terrorismo laico/religioso de direita/esquerda?
E a vida das vítimas das diversas ditaduras, quanto vale?
E a vida dos reféns das Farc?
Quanto vale uma vida civil?
É justo tomar partido? Existe o bem e o mal (também) na política?
De que rebanho você faz parte?
Na história, o que hoje parece verdade, amanhã pode se revelar só um jogo de cena.
O rebanho sempre tende a ir junto para o brejo ou o desfiladeiro. Quem se atrever a seguir a risca uma ideologia inevitavelmente irá se deparar com o fundamentalismo (geralmente nos momentos em que se torna impossível continuar a defender racionalmente o que se tem por verdade absoluta ou “revelação” – daí a repressão promovida por absolutismos quando no poder, como no caso das Revoluções jacobina, chinesa, russa ou iraniana, assim como nas sociedades em que a moral tradicional determina a vida social, como em algumas regiões de Israel, em parte dos países árabes ou entre os amish e os quakers da América do Norte).
O indivíduo, ao menos o que se faz livre da “moral de rebanho”, consegue circular nas “zonas cinza”, mesmo fora de sua “área de segurança”, e entender as circunstâncias, qualidades e defeitos da realidade que o cerca.
É a única moral possível, com o potencial de promover a cada um a possibilidade de buscar a plenitude de si mesmo.
O resto é propaganda.
O que separa um judeu massacrado de maneira desumana durante a segunda guerra e um palestino massacrado de maneira desumana na Faixa de Gaza?
O que separa (além de 5 séculos!) Hitler dos governos escravocratas da América, ou dos pioneiros do Oeste dos EUA?
Quanto vale a vida dos milhões de africanos portadores de HIV que correm o risco de ficar sem remédio graças ao interesse dos grandes laboratórios? E dos flagelados da seca nordestina? E a vida das mães e pais israelenses e palestinos que amargam uma sangrenta e diária guerra? E a vida dos iraquianos humilhados pelo sadismo de tropas privadas de mercenários e de guerreiros tribais xiitas e sunitas, quanto vale? E a vida dos desempregados da suposta crise financeira? E a vida dos cidadãos israelenses, libaneses, turcos, espanhóis, italianos, colombianos, argentinos e tantos outros, vítimas do terrorismo laico/religioso de direita/esquerda?
E a vida das vítimas das diversas ditaduras, quanto vale?
E a vida dos reféns das Farc?
Quanto vale uma vida civil?
É justo tomar partido? Existe o bem e o mal (também) na política?
De que rebanho você faz parte?
Na história, o que hoje parece verdade, amanhã pode se revelar só um jogo de cena.
O rebanho sempre tende a ir junto para o brejo ou o desfiladeiro. Quem se atrever a seguir a risca uma ideologia inevitavelmente irá se deparar com o fundamentalismo (geralmente nos momentos em que se torna impossível continuar a defender racionalmente o que se tem por verdade absoluta ou “revelação” – daí a repressão promovida por absolutismos quando no poder, como no caso das Revoluções jacobina, chinesa, russa ou iraniana, assim como nas sociedades em que a moral tradicional determina a vida social, como em algumas regiões de Israel, em parte dos países árabes ou entre os amish e os quakers da América do Norte).
O indivíduo, ao menos o que se faz livre da “moral de rebanho”, consegue circular nas “zonas cinza”, mesmo fora de sua “área de segurança”, e entender as circunstâncias, qualidades e defeitos da realidade que o cerca.
É a única moral possível, com o potencial de promover a cada um a possibilidade de buscar a plenitude de si mesmo.
O resto é propaganda.
terça-feira, 20 de janeiro de 2009
É a velha História
A tendência dos meios de comunicação dos EUA e do mundo, principalmente os telejornais e os jornais impressos, em suas análises editoriais e redatoriais, de comparar o hoje empossado Obama à presidentes como Abraham Lincoln e John Kennedy, ainda que nem sempre seja honesta ou justa, principalmente quando se trata de Kennedy, o cara que iniciou a Guerra do Vietnã e quase possibilitou a (real) hecatombe nuclear, tem três características positivas.
A primeira é resgatar a memória do mais esquerdista presidente da história americana. Lincoln, além de tirar da elite latifundiária do país qualquer chance de manter os EUA na plantation (morram de inveja FHC e Lula), proteger a indústria nacional e abolir a escravidão, manteve o país unido em tempos geopoliticamente conturbados lá, aqui, na Europa e na Ásia/África colonial, ao mesmo tempo em que fez uma maciça reforma-agrária, o que lhe valeu até a pecha de comunista, nos primórdios da ideologia (deixemos por hora de lado o fato de que foi assassinado).
A segunda é buscar dar legitimidade ao primeiro presidente negro do país, já que, nos EUA, isso já é, em si, um fator de altíssimo risco ainda hoje (dos rednecks falamos outro dia).
A terceira e, ao meu ver, a mais esclarecedora, é a valorização (ou talvez o renascimento), do interesse em História. Já que a situação econômica do país remete aos anos (19)30 e a geopolítica aos (19)60/70, com o islã no lugar do socialismo, Obama não se furtou em mencionar, em seu discurso de posse, que "a História dos EUA nos servirá de exemplo" para enfrentar o que eles consideram os seus "desafios" mais urgentes (ou alguém acha que um gigante cai sem espernear?).
A História as vezes pode ajudar a mudar a si mesma. Se Hitler tivesse estudado mais a História da França não teria invadido a Rússia nas portas do inverno.
Vamos ver se, com Obama, os exemplos da História serão bem compreendidos e utilizados. E deixem o Kennedy na tumba.
A primeira é resgatar a memória do mais esquerdista presidente da história americana. Lincoln, além de tirar da elite latifundiária do país qualquer chance de manter os EUA na plantation (morram de inveja FHC e Lula), proteger a indústria nacional e abolir a escravidão, manteve o país unido em tempos geopoliticamente conturbados lá, aqui, na Europa e na Ásia/África colonial, ao mesmo tempo em que fez uma maciça reforma-agrária, o que lhe valeu até a pecha de comunista, nos primórdios da ideologia (deixemos por hora de lado o fato de que foi assassinado).
A segunda é buscar dar legitimidade ao primeiro presidente negro do país, já que, nos EUA, isso já é, em si, um fator de altíssimo risco ainda hoje (dos rednecks falamos outro dia).
A terceira e, ao meu ver, a mais esclarecedora, é a valorização (ou talvez o renascimento), do interesse em História. Já que a situação econômica do país remete aos anos (19)30 e a geopolítica aos (19)60/70, com o islã no lugar do socialismo, Obama não se furtou em mencionar, em seu discurso de posse, que "a História dos EUA nos servirá de exemplo" para enfrentar o que eles consideram os seus "desafios" mais urgentes (ou alguém acha que um gigante cai sem espernear?).
A História as vezes pode ajudar a mudar a si mesma. Se Hitler tivesse estudado mais a História da França não teria invadido a Rússia nas portas do inverno.
Vamos ver se, com Obama, os exemplos da História serão bem compreendidos e utilizados. E deixem o Kennedy na tumba.
segunda-feira, 19 de janeiro de 2009
Você já foi à Gaza?
O pior inimigo de uma análise dialética do conflito entre israelenses e palestinos é o maniqueísmo. Ele mesmo, de quem os hebreus são os maiores expoentes, apesar de tê-lo aprendido com os persas. Afinal, todos sabem que, sob a acusação de deicídio, os judeus foram severamente perseguidos em todos os locais do mundo por onde se espalharam após a Diáspora imposta pelos romanos no ano 70. Antes ainda, no Egito ou na Babilônia, a sina dos hebreus sempre foi marginal e cruel, resultando no que Nietzsche denominou "rebelião escrava na moral" (assunto pra outra postagem). Sabemos também que o atual Estado de Israel foi criado de maneira unilateral pela ONU, após o holocausto da Alemanha nazista, ainda que a partilha de 1948 fosse muito mais justa do que a configuração atual do território, mas não tenha sido aceita pelos vizinhos árabes de Israel que, na época e pouco depois, prometerem "jogar os judeus no mar", e só não o fizeram devido ao apoio que França, Inglaterra e EUA deram aos israelenses. A reação dos árabes na época nos remete à outro ponto: Israel não tem o direito de existir? Penso que tem e sei que, se os árabes do Hamas tivessem metade do poder de Israel não encerrariam suas incursões militares antes de ver o último judeu dar seu último suspiro, e isso, parece que parte da opinião pública mundial não quer reconhecer.
Somado à esse instrínseco jogo geopolítico entra a questão da religião, já que parece que tanto Jeová quanto Aláh entendiam que Canaã pertencia aos "seus" e não se discute baseado na razão com pessoas movidas pelo fanatismo ou pela fé exacerbada e jihadista (cruzadista ou coisa que o valha).
Sendo assim, não parece ser possível, ao menos de maneira honesta, tomar partido de um lado ou de outro sem cometer injustiças, nem para aqueles que dedicaram sua vida ao estudo do Oriente Médio. Resta-nos lamentar as dores e perdas impostas à civis inocentes, de um lado e do outro.
O que se sabe com certeza é que a maior derrotada é a ONU que, após criar e defender por décadas Israel, hoje é ignorada pelo próprio "filho".
É por essas e por outras que Jim Morrison dizia que o "west is the best" e Churchill afirmava que a democracia é o "'menos pior' dos modelos até hoje experimentados".
Da minha parte, apesar de todos os defeitos e inconvenientes, agradeço todos os dias por viver no Ocidente.
Feliz 2009!
Somado à esse instrínseco jogo geopolítico entra a questão da religião, já que parece que tanto Jeová quanto Aláh entendiam que Canaã pertencia aos "seus" e não se discute baseado na razão com pessoas movidas pelo fanatismo ou pela fé exacerbada e jihadista (cruzadista ou coisa que o valha).
Sendo assim, não parece ser possível, ao menos de maneira honesta, tomar partido de um lado ou de outro sem cometer injustiças, nem para aqueles que dedicaram sua vida ao estudo do Oriente Médio. Resta-nos lamentar as dores e perdas impostas à civis inocentes, de um lado e do outro.
O que se sabe com certeza é que a maior derrotada é a ONU que, após criar e defender por décadas Israel, hoje é ignorada pelo próprio "filho".
É por essas e por outras que Jim Morrison dizia que o "west is the best" e Churchill afirmava que a democracia é o "'menos pior' dos modelos até hoje experimentados".
Da minha parte, apesar de todos os defeitos e inconvenientes, agradeço todos os dias por viver no Ocidente.
Feliz 2009!
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