segunda-feira, 27 de julho de 2009

Grupo estuda limitar o desenvolvimento da inteligência artificial

Do "NEW YORK TIMES"

Robôs que sozinhos podem abrir portas ou então encontrar energia quando precisam ser recarregados.Impressionados e alarmados pelos avanços da inteligência artificial, um grupo de cientistas da computação está debatendo como eles podem colocar limites nas pesquisas que poderão levar a perda do controle humano em determinadas tarefas.Apesar de os cientistas concordarem que a criação de um HAL, o robô do filme "2001:Uma Odisseia no Espaço", ainda está longe, cada vez mais, esses novos equipamentos vão forçar os humanos a conviver com as inteligências artificiais.O que vai ocorrer se a tecnologia da inteligência artificial for usada para minar as informações pessoais dos telefones inteligentes?Para Paul Berg, vencedor do Nobel de química em 1980, é importante que a comunidade científica promova o engajamento do público nessas questões, antes que ações alarmistas e de oposição comecem a surgir.Para Eric Horvitz, pesquisador da Microsoft que já organizou importantes eventos sobre o tema este ano, mais cedo ou mais tarde será preciso criar normas para o uso e o desenvolvimento das tecnologias artificiais.Mesmo assim, o cientista afirma que esses projetos vão beneficiar os humanos. Como a criação de um robô que, por exemplo, responda com empatia ao portador de alguma doença.

domingo, 26 de julho de 2009

Domingo eu quero ver...

Domingo é o dia em que as multidões se informam. Se sexta é o dia da cerveja, domingo é o dia do enraizamento dos clichês...

sexta-feira, 17 de julho de 2009

O continente dos gorilas

A América Latina, desde o final da Guerra-Fria - que opunha os blocos capitalista e comunista em uma disputa geopolítica e imperialista liderada de um lado pelos EUA e, de outro, pela URSS - não via a atuação direta dos chamados “gorilas” resultar em golpes de Estado com o apoio do exército serem bem sucedidos na subversão da ordem democrática, como está sendo o caso, nas últimas semanas, de Honduras.
Brasil, Argentina, Chile, Paraguai e Uruguai, assim como diversos países da América Central, com maior ou menor intensidade, viveram golpes e ditaduras militares nos anos 60, 70 e 80, alguns até os 90, dentro de um contexto geopolítico internacional que, ainda que não justifique, embasava a medida ideologicamente. Mas esse tempo, felizmente, já passou, ou parecia já ter passado, até que movimentações na Venezuela e, geralmente, em seus aliados, reacenderam no continente a chama do revanchismo e do golpismo, prejudicando os projetos de integração política, econômica e de infraestrutura na América Latina.
O argumento usado pelos opositores em Honduras é a tentativa do presidente deposto de alterar a constituição do país através de um plebiscito. Já o governo deposto argumenta que, através do plebiscito, seriam legitimadas democraticamente as alterações constitucionais.
Sem entrar no mérito da questão de forma parcial, ambos os lados atentam contra a lei. Um, por querer legitimar suas ações através de uma possível “onda plebiscitária”. O outro, por não aceitar ouvir as vozes das ruas, do povo, que, em última análise, deveria ser o agente principal em qualquer regime democrático.
O mais sensato seria que ambos os lados agissem dentro da lei vigente, respeitando as normas políticas instituídas e, para o caso de reformas, fazê-las dentro da legalidade e através de um amplo debate com a sociedade civil e seus representantes, antes mesmo da realização de qualquer plebiscito ou, mais ainda, de um golpe.
A comunidade internacional espera que os problemas da região sejam resolvidos sem traumas profundos e sem despertar, no nosso já sofrido continente, a tradição, aparentemente dormente, de intervenções armadas ou ilegais contra governos eleitos.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Homem das Multidões - Edgar Allan Poe

“Ce grand malheur, de ne pouvoir être Seul” - La Bruyère


De certo livro germânico, disse-se, com propriedade, que “es lãsst sich nicht lesen” – não se deixa ler. Há certos segredos que não consentem ser ditos. Homens morrem à noite em seus leitos, agarrados às mãos de confessores fantasmais, olhando-os devotamente nos olhos; morrem com o desespero no coração e um aperto na garganta, ante a horripilância de mistérios que não consentem ser revelados. De quando em quando, ai, a consciência do homem assume uma carga tão densa de horror que dela só se redime na sepultura. E, destarte, a essência de todo crime permanece irrevelada.
Há não muito tempo, ao fim de uma tarde de outono, estava eu sentado ante a grande janela do Café D... em Londres. Por vários meses andara enfermo, mas já me encontrava em franca convalescença e, com a volta da saúde, sentia-me num daqueles felizes estados de espírito que são exatamente o oposto do ennui; estado de espírito da mais aguda apetência, no qual os olhos da mente se desanuviam e o intelecto, eletrificado, ultrapassa sua condição diária tanto quanto a vívida, posto que cândida, razão de Leibiniz ultrapassa a doida e débil retórica de Górgias. O simples respirar era-me um prazer e eu derivava inclusive inegável bem-estar de muitas das mais legítimas fontes de aflição. Sentia um calmo, mas inquisitivo, interesse por tudo. Com um charuto entre os lábios e um jornal ao colo, divertira-me durante a maior parte da tarde, ora espionando os anúncios, ora observando a promíscua companhia reunida no salão, ora espreitando a rua através das vidraças esfumaçadas.
Era esta uma das artérias principais da cidade e regorgitara de gente durante o dia todo. Mas, ao aproximar-se o anoitecer, a multidão engrossou e quando as lâmpadas se acenderam, duas densas e contínuas ondas de passantes desfilavam pela porta. Naquele momento particular do entardecer, eu nunca me encontrara em situação similar e, por isso, o mar tumultuoso de cabeças humanas enchia-me de uma emoção deliciosamente inédita. Desisti finalmente de prestar atenção ao que se passava dentro do hotel e absorvi-me na contemplação da cena exterior.
De início, minha observação assumiu um feitio abstrato e generalizante. Olhava os transeuntes em massa e os encarava sob o aspecto de suas relações gregárias. Logo, no entanto, desci aos pormenores e comecei a observar, com minucioso interesse, as inúmeras variedades de figura, traje, ar, porte, semblante e expressão fisionômica.
Muitos dos passantes tinham um aspecto prazerosamente comercial e pareciam pensar apenas em abrir caminho através da turba. Traziam as sobrancelhas vincadas e seus olhos moviam-se rapidamente; quando davam algum encontrão em outro passante, não mostravam sinais de impaciência; recompunham-se e continuavam, apressados, seu caminho. Outros, formando numerosa classe, eram de movimentos irrequietos; tinham o rosto enrubescido e resmungavam e gesticulavam consigo mesmos, como se se sentissem solitários em razão da própria densidade da multidão que os rodeava. Quando obstados em seu avanço, interrompiam subitamente o resmungo, mas redobravam a gesticulação e esperavam, com um sorriso vago e contrafeito, que as pessoas que os haviam detido passassem adiante. Se alguém os acotovelava, curvavam-se cheios de desculpas, como que aflitos pela confusão.
Nada mais havia de distintivo sobre estas duas classes além do que já observei. Seus trajes pertenciam àquela espécie adequadamente rotulada de decente. Eram, sem dúvida, fidalgos, comerciantes, procuradores, negociantes, agiotas – os Eupátridas e os lugares-comuns da sociedade, - homens ociosos e homens atarefados com assuntos particulares, dirigindo negócios de sua própria responsabilidade. Não excitaram muito minha atenção.
A tribo dos funcionários era das mais ostensivas e nela discerni duas notáveis subdivisões. Havia, em primeiro lugar, os pequenos funcionários de firmas transitórias, jovens cavalheiros de roupas justas, botas de cor clara, cabelo bem emplastado e lábios arrogantes. Posta de lado certa elegância de porte, a que, à mingua de melhor termo, pode-se dar o nome de “escrivanismo”, a aparência deles parecia-me exato fac-símile do que, há doze ou dezoito meses, fora considerada a perfeição do bom tom. Usavam os atavios desprezados pelas classes altas – e isto, acredito, define-os perfeitamente.
A subdivisão dos funcionários categorizados de firmas respeitáveis era inconfundível. Fazia-se logo reconhecer pelas casacas e calças pretas ou castanhas, confortáveis e práticas, pelas gravatas brancas, pelos coletes, pelos sapatos sólidos, pelas meias grossas e pelas polainas. Tinham todos a cabeça ligeiramente calva e a orelha direita levantada, devido ao hábito de ali prenderem caneta. Observei que usavam sempre ambas as mãos para porem ou tirarem o chapéu e que traziam relógios com curtas cadeias de ouro maciço, de modelo antigo. A deles era a afetação da respeitabilidade, se é que existe, verdadeiramente, afetação tão respeitável.
Havia muitos indivíduos de aparência ousada, característica da raça dos batedores de carteiras, que infesta todas as grandes cidades. Eu os olhava com muita curiosidade e achava difícil imaginar que pudessem ser tomados por cavalheiros pelos cavalheiros propriamente ditos. O comprimento do punho de suas camisas, assim como o ar de excessiva franqueza que exibiam, era quanto bastava para denunciá-los de imediato.
Os jogadores – e não foram poucos os que pude discernir – eram ainda mais facilmente identificáveis. Usavam trajes dos mais variados, desde o colete de veludo, o lenço fantasia ao pescoço, a corrente de ouro e os botões enfeitados do mais janota dos rufiões às vestes escrupulosamente desadornadas dos clérigos, incapazes de provocarem a mais leve das suspeitas. Não obstante, denunciava-os certa compleição viscosa e trigueira, certa membranosa opacidade dos olhos, assim como o palor da tez e o apertado dos lábios. Havia, ademais, dois outros traços característicos que me possibilitavam identificá-los: a voz estudadamente humilde e a incomum extensão do polegar, que fazia ângulo reto com os demais dedos. Muitas vezes, em companhia destes velhacos, observei outra espécie de homens, algo diferentes nos hábitos mas, não obstante, pássaros de plumagem semelhante. Podiam ser definidos como cavalheiros que viviam à custa da própria finura. Ao que parecia, dividiam-se em dois batalhões, no tocante a rapinar o público – de um lado, os janotas; de outro, os militares. Os traços distintivos do primeiro grupo eram o cabelo anelado e o sorriso aliciante; o segundo grupo caracterizava-se pelo semblante carrancudo e pela casaca de alamares.
Descendo na escala do que se chama a “gente de bem”, encontrei temas para especulações mais profundas e mais sombrias. Encontei judeus bufarinheiros, com olhos de falcão cintilando num semblante onde tudo o mais era abjeta humildade; atrevidos mendigos profissionais hostilizando mendicantes de melhor aparência, a quem somente o desespero levara a recorrer à caridade noturna; débeis e cadavéricos inválidos, sobre os quais a morte já estendera sua garra, é que se esgueiravam pela multidão, olhando, implorantes, as faces dos que passavam, como se em busca de qualquer consolação ocasional, de qualquer esperança perdida; mocinhas modestas voltando para seus lares taciturnos após um longo e exaustivo dia de trabalho e furtando-se, mais chorosas que indignadas, aos olhares cúpidos dos rufiões, cujo contacto direto, não obstante, não podiam evitar; mundanas de toda sorte e de toda idade; a inequívoca beleza no auge da feminilidade, lembrando a estátua de Luciano, feita de mármore de Paros, mas cheia de imundícies em seu interior; a repugnante e desarvorada leprosa vestida de trapos; a velhota cheia de rugas e de jóias, exageradamente pintada, num derradeiro esforço por parecer jovem; a menina de formas ainda imaturas, mas que, através de longa associação, já se fizera adepta das terríveis coqueterias próprias do seu ofício e ardia de inveja por igualar-se, no vício, às suas colegas mais idosas; bêbados inúmeros e indescritíveis; uns, esfarrapados, cambaleando inarticulados, o rosto contundido e os olhos virados; outros, de trajes ensebados, algo fanfarrões, lábios grossos e sensuais, a face apopleticamente rubicunda; outros, trajando roupas que, em tempos passados, haviam sido elegantes e que, ainda agora, mantinham escrupulosamente escovadas; homens que caminhavam com passo firme, mas cujo semblante se mostrava medonhamente pálido, cujos olhos estavam congestionados e cujos dedos trêmulos se agarravam, enquanto abriam caminho por entre a multidão, a qualquer objeto que lhes estivesse ao alcance; além destes todos, carregadores de anúncios, moços de frete, varredores, tocadores de realejo, domadores de macacos ensinados, cantores de rua, camelôs, artesãos esfarrapados e trabalhadores exaustos, das mais variadas espécies – tudo isto cheio de bulha e desordenada vivacidade, ferindo-nos discordantemente os ouvidos e provocando-nos uma sensação dolorida nos olhos.
Conforme a noite avançava, progredia meu interesse pela cena. Não apenas o caráter geral da multidão se alterava materialmente (seus aspectos mais gentis desaparecendo com a retirada da porção mais ordeira da turba, e seus aspectos mais grosseiros emergindo com maior relevo, porquanto a hora tardia arrancava de seus antros todas as espécies de infâmias), mas a luz dos lampiões a gás, débil, de início, na sua luta contra o dia agonizante, tinha por fim conquistado ascendência, pondo nas coisas um lustro trêmulo e vistoso. Tudo era negro mas esplêndido – como aquele ébano ao qual tem sido comparado o estilo de Tertuliano.
Os fanáticos efeitos de luz levaram-me ao exame das faces individuais e, embora a rapidez com que o mundo iluminado desfilava diante da janela me proibisse lançar mais que uma olhadela furtiva a cada rosto, parecia-me, não obstante, que, no meu peculiar estado de espírito, podia eu ler freqüentemente, mesmo no breve intervalo de um olhar, a história de longos anos.
Com a testa encostada ao vidro, estava eu destarte ocupado em examinar a turba quando, subitamente, deparei com um semblante (o de um velho decrépito, de uns sessenta e cinco a setenta anos de idade), um semblante que, de imediato, se impôs fortemente à minha atenção, dada a absoluta idiossincrasia de sua expressão. Nunca vira qualquer coisa que se lhe assemelhasse, nem de longe. Lembrando-me bem de que meu primeiro pensamento, ao vê-lo, foi o de que, tivesse-o conhecido Retzsch e não haveria de querer outro modelo para as suas encarnações pictóricas do demônio. Enquanto tentava, durante o breve minuto em que durou esse primeiro exame, analisar o significado que sugeria, nasceram, de modo confuso e paradoxal, no meu espírito, as idéias de vasto poder mental, de cautela, de indigência, de avareza, de frieza, de malícia, de ardor sanguinário, de triunfo, de jovialidade, de excessivo terror, de intenso e supremo desespero. Senti-me singularmente exaltado, surpreendido, fascinado. “Que extraordinária história – disse a mim mesmo – não estará escrita naquele peito!” Veio-me então o imperioso desejo de manter o homem sob minhas vistas... de saber mais sobre ele. Vesti apressadamente o sobretudo e, agarrando o chapéu e a bengala, saí para a rua e abri o caminho por entre a turba em direção ao local em que o havia visto desaparecer, pois, a essa altura, ele já sumira de vista. Ao cabo de algumas pequenas dificuldades, consegui por fim divisá-lo, aproximar-se dele e segui-lo de perto, embora com cautela, de modo a não lhe atrair a atenção.
Tinha agora uma boa oportunidade para examinar-lhe a figura. Era de pequena estatura, muito esguio de corpo e, aparentemente, muito débil. Suas roupas eram, de modo geral, sujas e esfarrapadas, mas quando ele passava, ocasionalmente, sob algum foco de luz, eu podia perceber que o linho que trajava, malgrado a sujeira, era de fina textura e, a menos que minha visão houvesse me enganado, tive um relance através de uma fresta da roquelaure, evidentemente de segunda mão, que ele trazia abotoada de cima abaixo, de um diamante e de uma adaga. Essas observações aguçaram minha curiosidade e decidi-me a acompanhar o estranho até onde quer que ele fosse.
Era já noite fechada e uma neblina úmida e espessa, que logo se agravou em chuva pesada, amortalhava a cidade. Essa mudança de clima teve um bizarro efeito sobre a multidão, que logo foi presa de nova agitação e se abrigou sob um mundo de guarda-chuvas. A agitação, os encontrões e o zum-zum decuplicaram. De minha parte, não liguei muito para a chuva; uma velha febre latente em meu organismo fazia com que eu a recebesse com um prazer algo temerário. Amarrando um lenço à boca, continuei a andar. Durante meia hora o velho prosseguiu seu caminho, com dificuldade, ao longo da grande avenida; eu caminhava grudado aos seus calcanhares, com medo de perdê-lo de vista. Como nunca voltou a cabeça para trás, não se deu conta de minha perseguição. A certa altura, meteu-se por uma travessa que, embora repleta de gente, não estava tão congestionada quanto a avenida que abandonara. Evidenciou-se, então, uma mudança no seu procedimento. Caminhava agora mais lentamente e menos intencionalmente do que antes; com maior hesitação, dir-se-ia. Atravessou e tornou a atravessar a rua, repetidas vezes, sem propósito aparente, e a multidão era ainda tão espessa que, a cada movimento seu, eu era obrigado a segui-lo bem de perto. A rua era longa e apertada e ele caminhou por ela cerca de uma hora; durante esse tempo, o número de transeuntes havia gradualmente decrescido para aquele que é ordinariamente visto, à noite, na Broadway, nas proximidades do Park, tão grande é a diferença entre a populaça de Londres e a da mais populosa das cidades americanas. Um desvio de rota levou-nos a uma praça brilhantemente iluminada e transbordante de vida. As antigas maneiras do estranho voltaram a aparecer. O queixo caiu-lhe sobre o peito, enquanto seus olhos se moviam, inquietos, sob os cenhos franzidos em todas as direções, espreitando os que o acossavam. Abriu caminho por entre a multidão com firmeza e perseverança. Surpreendi-me ao ver, que, tendo completado o circuito da praça, ele voltava e retomava o itinerário que mal acabara de completar. Mais atônito ainda fiquei ao vê-lo repetir o mesmo circuito diversas vezes; quase que deu comigo, certa vez em que se voltou com um movimento brusco.
Nesse exercício gastou mais uma hora, ao fim da qual encontramos menos interrupções, por parte dos transeuntes, que da primeira vez. A chuva continuava a cair, intensa; o ar tornou-se frio; os passantes se retiravam para suas casas. Com um gesto de impaciência, o estranho ingressou num beco comparativamente deserto. Caminhou apressadamente, durante cerca de um quarto de milha, com uma disposição que eu jamais sonhara ver em pessoa tão idosa; grande foi a minha dificuldade para acompanha-lo. Alguns minutos de caminhada levaram-nos a uma grande e ruidosa feira, cujas localidades pareciam bastante familiares ao estranho e ali retomou ele suas maneiras primitivas, enquanto abria caminho de cá para lá, sem propósito definido, por entre a horda de compradores e vendedores.
Durante a hora e meia, aproximadamente, que passamos nesse local, foi-me mister muita cautela para seguir-lhe a pista sem atrair sua atenção. Felizmente, eu calçava galochas e podia movimentar-me em absoluto silêncio. Em nenhum momento percebeu ele que eu o vigiava. Entrou em loja após loja; não perguntava o preço de artigo algum nem dizia qualquer palavra, mas limitava-se a olhar todos os objetos com um olhar desolado, despido de qualquer expressão. Eu estava profundamente intrigado com o seu modo de agir e firmemente decidido a não separar-me dele antes de estar satisfeita, até certo ponto, minha curiosidade a seu respeito.
Um relógio bateu onze sonoras badaladas e a feira começou a despovoar-se rapidamente. Um lojista, ao fechar um postigo, deu um esbarrão no velho e, no mesmo instante, vi um estremecimento percorrer-lhe o corpo. Saiu apressadamente para a rua e olhou ansioso à volta de si, por um momento; encaminhou-se depois, com incrível rapidez, através de vielas, umas cheias de gente, outras despovoadas, para a grande avenida da qual partira, a avenida onde ficava o Hotel D... Esta, no entanto, já não apresentava o mesmo aspecto. Estava ainda brilhantemente iluminada, mas a chuva caía pesadamente e havia poucas pessoas à vista. O estranho empalideceu. Deu alguns passos caprichosos pela antes populosa avenida e depois, suspirando profundamente, tomou a direção do rio. Após ter atravessado uma grande variedade de ruas tortuosas, chegou por fim diante de um dos teatros principais da cidade. Este estava prestes a fechar e os espectadores saíam pelas portas escancaradas. Vi o velho arfar, como se por falta de ar, e mergulhar na multidão, mas julguei perceber que a intensa agonia do seu semblante tinha, de certo modo, amainado. A cabeça caiu-lhe sobre o peito novamente, como quando eu o vira pela primeira vez. Observei que seguia agora o caminho tomado pela maioria dos espectadores, mas, de modo geral, não conseguia compreender a inconstância de suas ações.
Enquanto caminhava, o número de transeuntes ia rareando e sua antiga inquietude e vacilação voltara a aparecer. Durante algum tempo, acompanhou de perto um grupo de dez ou doze valentões; mas o grupo foi diminuindo aos poucos, até que ficaram apenas três dos componentes, numa ruazinha estreita, melancólica, pouco freqüentada. O estranho se deteve e, por um momento, pareceu imerso em reflexões; depois, com evidentes sinais de agitação, seguiu em rápidas passadas um itinerário que nos levou aos limites da cidade; para regiões muito diversas daquelas que havíamos até então atravessado. Era o mais esquálido bairro de Londres; nele tudo exibia a marca da mais deplorável das pobrezas e do mais desesperado dos crimes. À débil luz das lâmpadas ocasionais, altos e antigos prédios, construídos de madeiras já roídas de vermes, apareciam cambaleantes e arruinados, dispostos em tantas e tão caprichosas direções, que mal se percebia um arremedo de passagem por entre eles. As pedras do pavimento jaziam espalhadas, arrancadas de seu leito original, onde agora viçava a grama, exuberante. Um odor horrível se desprendia dos esgotos arruinados. A desolação pervagava a atmosfera. No entanto, conforme avançávamos, ouvimos sons de vida humana e, por fim, deparamos com grandes bandos de classes mais desprezadas da população londrina vadiando de cá para lá. O ânimo do velho se acendeu de novo, como lâmpada bruxuleante. Uma vez mais, caminhou com passo elástico. Subitamente, ao dobrarmos uma esquina, uma clarão de luz feriu-nos os olhos e detivemo-nos diante de um dos enormes templos urbanos de Intemperança – um dos palácios do demônio Álcool.
O amanhecer estava próximo, mas, não obstante, uma turba de bêbados desgraçados atravancava a porta de entrada da taverna. Com um pequeno grito de alegria, o velho forçou a passagem e, uma vez dentro do salão, retomou suas maneiras habituais, vagueando, sem objetivo aparente, por entre a turba. Não fazia, porém, muito tempo que se ocupava nesse exercício quando uma agitação dos presentes em direção à porta deu a entender que o proprietário da taverna resolvera fecha-la por aquela noite. Era algo mais intenso que desespero o sentimento que pude ler no semblante daquela criatura singular a quem eu estivera a vigiar tão pertinazmente. Todavia, ele não hesitou por muito tempo; com doida energia, retomou o caminho de volta para o coração da metrópole. Caminhava com passadas longas e rápidas, enquanto eu o seguia, cheio de espanto, mas decidido a não abandonar um escrutínio pelo qual sentia, agora, o mais intenso dos interesses. Enquanto caminhávamos, o sol nasceu, e quando alcançamos novamente o mais populoso mercado da cidade, a rua do Hotel D..., apresentava esta uma aparência de alvoroço e atividade muito pouco inferior àqueles que eu presenciara na véspera. E ali entre a confusão que crescia a cada momento, persisti na perseguição ao estranho. Mas este, como de costume, limitava-se a caminhar de cá para lá; durante o dia todo, não abandonou o turbilhão da avenida. Quando se aproximaram as trevas da segunda noite, aborreci-me mortalmente e, detendo-me bem em frente do velho, olhei-lhe fixamente o rosto. Ele não deu conta de mim, mas continuou a andar, enquanto eu, desistindo da perseguição, fiquei absorvido vendo-o afastar-se.
“Este velho – disse comigo, por fim – é o tipo e o gênio do crime profundo. Recusa-se a estar só. É o homem da multidão. Será escusado segui-lo; nada mais saberei a seu respeito ou a respeito dos seus atos. O mais cruel coração do mundo é livro mais grosso que o Hortulus Animae e talvez seja uma das mercês de Deus que es lãsst sich nicht lesen”.
Edgar Allan Poe

República Verde-Oliva

Na hipótese de que o anseio da parcela mais radicalmente à direita da sociedade brasileira seja atendido, não seria a primeira vez que u...