segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Historiadora retrata Helena, a mulher que "causou" a guerra de Troia

REINALDO JOSÉ LOPES
da Folha de S. Paulo

A Grécia do fim da Idade do Bronze era um lugar tão esquisito que um viajante do tempo familiarizado com os gregos da época de Sócrates e Platão provavelmente ia achar que se perdeu num universo paralelo.

Em vez de filosofia, participação popular na política e soldados-cidadãos, o turista temporal ia se deparar com templos-palácios suntuosos, túmulos faraônicos para a nobreza, escribas controlando a distribuição de cada bezerro e cada grão de cevada.

As pessoas já falavam uma forma arcaica de grego, mas, tirando isso, seria possível jurar que eram babilônios ou egípcios. Nesse mundo, diz Bettany Hughes, viveu a lendária Helena de Troia.

Hughes, historiadora por Oxford, conseguiu construir uma narrativa erudita e envolvente em "Helena de Troia", recém-lançado no Brasil.

Ao tentar investigar a existência de uma "Helena histórica" (mais ou menos como outros tentam recriar o "Jesus histórico" ou o "Sócrates histórico"), a historiadora anda com desteza pelas ondas de choque que surgem do mito da mulher mais bela do mundo.

Espartanas da época clássica, turistas romanos, pintores vitorianos e poetas modernistas --todos, em alguma medida, transformaram Helena em musa.

Mas, para Hughes, o melhor modelo para entender a personagem de Homero são as aristocratas do Egeu na Idade do Bronze tardia, pouco antes do ano 1200 a.C. Elas eram, de fato, retratadas de forma que faria corar suas descendentes mais recatadas --e indefesas-- do período clássico da Grécia.

Poderosas

Afrescos, joias e objetos de arte deixados pela civilização micênica, como é conhecida essa versão "faraônica" da cultura grega por causa de Micenas, seu principal centro, sugerem um papel social significativo para mulheres belas e imponentes.

Seguindo, ao que tudo indica, a moda cretense (povo anterior que os gregos micênicos conquistaram e absorveram culturalmente), muitas delas aparecem com corpetes apertadíssimos que deixavam os seios descobertos --às vezes com mamilos realçados por maquiagem.

Cenas que parecem ser de rituais, envolvendo espadas, joias, o Sol e a Lua, árvores e danças enigmáticas, também são quase sempre protagonizadas por mulheres nos afrescos micênicos.

Uma das damas é retratada com armadura completa e elmo feito de presas de javali na cabeça --apetrecho guerreiro que, em outros exemplos de arte micênica, só aparece associado a homens.

Assim como outros, Hughes postula que as mulheres micênicas tinham o papel de senhoras e sacerdotisas da fertilidade (daí o holofote iconográfico sobre suas curvas e seios), o que lhes conferia prestígio político.

A beleza e a feminilidade da Helena do mito, portanto, sinalizaria algo mais do que mera estética: uma dama poderosa, talvez com status semidivino, venerada por seus súditos.

A segunda peça importante do quebra-cabeças da "Helena histórica" fica do lado leste do estreito de Dardanelos. Escavações na Turquia ao longo dos séculos 19 e 20 revelaram que a localização atribuída tradicionalmente a Troia realmente abrigava uma cidadela imponente no fim da Idade do Bronze, e que a fortaleza foi destruída por volta de 1200 a.C.

Textos nos arquivos do Império Hitita, então estabelecido mais para o interior turco, sugerem que a área de Troia era um ponto de tensão entre micênicos e hititas. Assim, não seria inconcebível que Troia tivesse mesmo sido destruída por atacantes gregos, usando a bela Helena como pretexto.

Dificuldades

O quadro geral faz um bocado de sentido, mas é nesse ponto que a musa de Hughes acaba deixando a historiadora na mão. É um bocado difícil fazer o salto entre os incidentes e personagens específicos de Homero na Ilíada e o quadro relativamente impessoal das relações entre micênicos e asiáticos que aparece nos arquivos hititas.

E certamente não há quaisquer referências diretas a Helena, seu marido corneado Menelau e os guerreiros gregos Aquiles e Odisseu (Ulisses) nos textos diplomáticos do Império Hitita.

Também é possível interpretar a iconografia "feminista" dos micênicos como mero peso morto cultural, já que eles copiaram avidamente os sofisticados cretenses (assim como, mais tarde, os romanos copiaram os gregos) sem necessariamente aderir aos mesmos valores sobre o papel das mulheres.

Por último, como a própria Hughes relata, os palácios micênicos na Grécia continental, bem como outras cidadelas poderosas do Mediterrâneo Oriental, acabaram tendo o mesmo destino de Troia no espaço de uma ou duas gerações: foram arrasadas por aparentes invasores. Não é impossível que, na verdade, os micênicos tenham sido apenas vítimas, tal como os troianos.

Nenhum desses pecadilhos, no entanto, tira o sabor da obra. Tal como na guerra de Troia, Helena é um belo pretexto para um cenário muito maior e mais fascinante do que ela própria.

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